Episódio 4

Temporada Álbum de recordação BSB

Homenagem às Avós do Recanto das Emas – EP4 | Dazumana #50

Falando em patrimônio, você conhece a história da sua família? Quantos causos sua história já contou sobre a vida de antes de você nascer? Puxe uma cadeira e pegue um café, porque, junto com o doutor em História Jorge dos Santos, vamos ouvir um pouco sobre as histórias das avós do Recanto das Emas. A partir desses relatos, desvendamos o patrimônio e a formação dessa Região Administrativa.

Sobre o episódio

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Juliana: Olá, este é um novo episódio do Dazumana da temporada Álbum De Recordações BSB. Você já entrevistou sua mãe, tio ou avó para saber mais do bairro da cidade onde vive? Imagine como se revelam histórias e causos pouco falados, mas que fazem parte da nossa memória.

Leyberson: Essa foi a proposta de um professor do Recanto das Emas, ele convidou suas alunas e alunos a conversar com as suas avós e alguns avós produzindo narrativas autobiográficas e sobre a cidade. Foi um jeito de dar sentido ao território a partir das experiências do dia a dia

Juliana: O nome desse professor é Jorge Arthur dos Santos que é o nosso convidado de hoje. Oi, Jorge, tudo bem?

Jorge: Olá, boa noite.

Leyberson: Boa noite, Jorge, muito obrigado por estar participando aqui com a gente dessa temporada do Dazumana, e a gente começa então o ritual de leitura do Lattes do nosso convidado. O Jorge é Mestre e Doutor em História pela Universidade de Brasília, possuindo bacharelado e licenciatura, e é professor da rede pública do Distrito Federal desde 2009, tendo atuado com foco nos anos finais do Ensino Fundamental,

Leyberson: O Jorge realizou um longo trabalho de ensino e pesquisa sobre a história do Recanto das Emas, região administrativa do DF, a partir da realidade das escolas dessa cidade. Bom, Jorge, é isso mesmo? Parece que teve algumas mudanças aí de CEP, né?

Jorge: Atualmente, eu sou Professor na Asa Norte no CEF 102 Norte. Já tô na regional de ensino do Plano Piloto desde 2020. Assim eu passei muitos anos cercando as Emas tá marcado na minha história, mas eu já mudei de Regional de ensino

Juliana: e a gente tem uma pergunta inaugural para todos os nossos entrevistados que é entender o porquê trabalhar com memória, recordação e patrimônio O que te despertou para isso?

Jorge: Então, assim, a minha prática sempre parte da sala de aula. Então assim eu sempre quis ser professor, sou filho de professor, meu pai era professor, minha mãe é jornalista, mas foi professora, minhas tias. Então eu tenho um monte de professora na família

Jorge: E eu resolvi muito novo que queria ser professor de história. Sou da primeira turma do PAS. Entrei na UnB para cursar a história muito decidido, muito convicto e sempre com esses sonhos de chegar na sala de aula. Demorou um tempo para eu conseguir chegar na sala de aula, mas quando eu fui assim no imediato logo que cheguei no Recanto das Emas, inclusive eu comecei a ser professora praticamente na Secretaria de Educação. Eu já tinha feito o meu mestrado que é sobre o livro didático de História e o Programa Nacional do Livro Didático. E aí, ou seja, eu tinha, digamos, uma bagagem acadêmica já, muita vontade, mas eu não conseguia acessar a sala de aula. Passei no concurso da Secretaria, fui chamado, entrei em 2009, só que eu fui dar aula à noite para o ensino médio no Centro de Ensino Médio 111 do Recanto, que é uma escola enorme, escola grande e uma escola antiga no Recanto assim uma escola com muita história. Só que eu fui dar aula à noite. Foi uma experiência assim muito marcante até, mas, logo que eu pisei na sala de aula, eu me vi reproduzindo a aula que eu tinha quando eu era aluno assim, eu aquela sensação de que a universidade não te preparou. Que você vai viver coisa na sala de aula que só lá no chão da sala de aula acontece, né? Então foi uma experiência assim muito diferenciada. No ano seguinte, eu ampliei minha carga, fui pra manhã e tive que mudar de escola por causa disso. E por um acaso do destino, eu fui parar no então CEF 308, hoje em dia SEDE 308 do Recanto das Emas, que é uma das quatro primeiras escolas que foi militarizada aí nesse projeto de militarização do atual governo do Distrito Federal, né? Que foi o processo que me fez sair da escola, na verdade. E eu cheguei lá e lá eu tinha 10 turmas sexto ano. Eu sou apaixonado pelo sexto ano, eu acho assim. Atualmente eu não tô dando aula para o sexto ano, mas meu sonho é voltar, to tentando organizar minha vida para voltar para o sexto ano, eu acho uma época mágica para você trabalhar com o ser humano. E quando eu cheguei lá, por conta desse trabalho que eu tinha com o livro didático no meu mestrado, eu tinha contato com um livro chamado história temática na época que é da Conceição Cabrini, mas que depois no PNLD seguinte ele muda para Projeto Velear e hoje em dia ele não existe mais. E ele tinha uma proposta uma atividade assim dessa de primeiro capítulo de “proponha para os seus estudantes que eles façam uma biografia dos avós, que eles entrevistem os avós para eles se conectarem com essa história familiar, com a memória”, dentro daquela ideia de trabalhar os conceitos e tal aquela coisa introdutória. E aí eu passei esse trabalho dentro da minha juventude de querer formar para pôr coisas diferentes, escutar e conhecer meus estudantes. Assim, antes de eu ir dar aula no Recanto das Emas eu nunca tinha pisado, né? Eu sou nascido e criado no Cruzeiro, hoje em dia eu moro na Asa Sul, mas eu morei 35 anos no Cruzeiro, e só conhecia o Recanto das Emas e de ouvir falar. E aí quando eu recebi esses trabalhos de volta, eu fiquei deslumbrado e eu entendi uma coisa que depois eu consegui construir melhor assim na época do doutorado eu já tava com isso muito bem definido para mim: que não era eu que tava lá para ensinar história para eles eram eles que tava lá para ensinar história para mim, né?

Jorge: Então, assim eu tive um aprendizado muito poderoso de como a relação da sala de aula, hoje em dia eu vejo isso claramente, eu enquanto professor, eu sou mais um estudante lá e, na verdade, eu aprendo com eles muito mais do que eles aprendem comigo. Porque eles são um monte de gente para me ensinar coisas e eu sou uma pessoa só com as minhas experiências, com as minhas propostas, mas a gente tá todo mundo lá para aprender junto, né? E aí eu fiquei encantado porque eu comecei a conhecer o Recanto das Emas, aquele lugar que me cercava e eu não conhecia. Porque até então eu era um carro que chegava lá, entrava nos muros da escola e ficava lá dentro, e tinha toda uma comunidade lá em volta. E tinha aqueles estudantes. Eu gosto do sexto ano por causa disso, porque o sexto ano ainda tem uma energia assim, um encantamento com as coisas assim. Conforme eles vão ficando adolescentes, o sistema vai silenciando isso. Eles vão se acomodando, eles vão criando aquela resistência ao que eles sabem que é a morosidade e a chatice da educação tradicional. E aí eu falei assim “não, eu não posso, eu não posso simplesmente dar uma nota nesses trabalhos e devolver para os meninos, eu tenho que ampliar isso aqui”. E aí eu fui me encantando com essas memórias que iam chegando, aí a cada ano eu fui ampliando o projeto. Hoje em dia eu tenho, sei lá, 3 mil trabalhos das avós guardados assim, começou tudo lá. Na época do doutorado, eu tinha mil e tantos, hoje em dia já tá nos 3 mil, porque hoje em dia, mesmo não trabalhando com o sexto ano, eu continuo com esse projeto, mesmo não trabalhando mais no Recanto, eu continuo com esse projeto de falar para os meus estudantes que a história não vem do mundo para eles, mas deles para o mundo. Então eles têm que conhecer a própria história primeiro, a história deles mesmos, a história da família deles, a história do lugar onde eles moram. E a cada ano, como o processo foi crescendo, essa memória que eu ia conhecendo, me envolvendo com ela, que eu ia tecendo, que ia me tecendo também, porque na sala de aula eu fazia um trabalho, que a tese tenta ser um pouco isso também, de costurar essas memórias. Então em sala eu pegava os trabalhos dos estudantes e, com eles, no quadro, a gente ia escrevendo a história do Recanto a partir dos trechos de alguns trabalhos. Cada um ia trazendo uma escolha dentro do próprio trabalho e a gente ia construindo uma grande colcha de retalho de memórias que contava a história do Recanto das Emas. E aí eu fui percebendo que eu queria fazer mais que isso, aí que foi nascendo a ideia da tese. E realmente, conforme eu Fui lendo e ampliando as minhas leituras, eu fui me encantando com a memória enquanto uma área de saber assim, fui percebendo como a história que tem tanta coisa para aprender com a memória, né? Não é a história que chega lá para dizer para a memória o que ela tem que fazer, né? Então assim, foi um processo meio em rede assim, não é uma coisa muito linear. Quando eu entrei para o doutorado eu ainda permaneci trabalhando em sala de aula, então as coisas foram uma reverberando na outra, mas quando chegou em 2015, eu já tinha um ano e meio de doutorado, minha filha nasceu. Aí eu não consegui mais conciliar tudo, doutorado, filho, trabalho, 10 turmas lá no Recanto, então aí eu tirei a licença do doutorado e passei dois anos e meio afastado da sala de aula, embora eu continuasse em contato com a escola. Eu continuava indo na escola, eu continuei fazendo, desenvolvendo alguns dos projetos da escola junto da escola. Tanto que quando acabou o meu doutorado eu consegui voltar para a mesma escola,

Leyberson: Então, eu queria que você contasse para a gente assim, como se eu fosse um aluno, como se a Ju fosse uma aluna, como chega e você apresenta esse projeto para uma criança do sexto ano assim? “Olha, vocês vão na sua casa, vão ouvir tal pessoa da família e vão me trazer o que”. Como é que se apresentava e o que que você falava “assim, olha vamos fazer isso”. E porque? Queria que você explicasse esse passo a passo, né?

Jorge: Diria para você assim… Hoje eu já tenho isso assim muito bem desenvolvido, né, hoje em dia isso é um trabalho de 15 anos na minha vida. Então ele tá muito bem consolidado eu diria, mas 14 anos atrás, quando ele começou, mas exatamente quando eu cheguei na sala do sexto ano, foi tudo muito experimental. Assim, eu sou um cara muito prático. Eu sou dessa teoria que as pessoas têm que meter a mão na massa, elas têm que fazer as coisas e elas vão aprender com a riqueza da experiência. Com os estudantes é assim também. Sejam eles do sexto, do oitavo, do nono, do ensino médio, tanto faz a época. Embora eu tenha uma resistência a trabalhar com adulto porque eu acho adulto muito chato. Adulto já tá muito querendo as coisas mastigadas e tal. Os jovens não, eles têm uma pulsão assim, uma energia que, quando as coisas começam a acontecer, eles se entregam ao encantamento. Então, acima de tudo, principalmente com os meninos do sexto ano, é um convite ao encantamento. Porque eu não sei vocês, mas para mim vó é uma das coisas mais mágicas que tem no mundo é vó. Então assim, eu tenho uma experiência riquíssima com a minha voz. Eu sou neto que cresceu na casa da avó e tal. Então assim, minha avó era uma pessoa maravilhosa na minha vida, de certo modo todo esse trabalho também uma certa homenagem a ela. Eu falo isso na tese, por exemplo, que é uma homenagem às minhas avós e às avós de modo geral. Assim, eu acho que tem uma coisa — e o Benjamin me fala um pouco sobre isso — sobre a aceleração do tempo e como a gente vai perdendo essa arte de contar histórias, né? E eu acho que essa conexão entre avós e netos ela é, nossa, ela é uma coisa sublime que não pode… eu sei que no fim não tem como se perder ela tá sempre se transformando, na verdade, mas gera essa aceleração do tempo, essa coisa das pessoas não estarem umas prestando a atenção nas outras, delas não se escutarem tanto, das Crianças estarem muito nas telas e tudo mais todos esses tipos de coisa.

Jorge: E aí eu falo para eles. Eu falo “cara, ó, se uma avó ficar feliz porque o neto parou para ir lá e escutar ela e perguntar da vida dela, meu trabalho já valeu a pena”. E garanto para vocês que todo ano eu recebo devolutivas de avós super agradecidas, às vezes os próprios estudantes me contam. “Professor, minha avó ficou tão feliz, quando eu fui lá eu fui entrevistar ela”. E tem trabalho que eu leio, juro para vocês, de chorar em cima do trabalho de tão maravilhoso que fica o relato, a produção de texto e como as avós no próprio contavam falando da satisfação que elas estão tendo de um neto ou de uma neta tá lá conversando com ela. Eu vou explicar aqui uma coisa que eu explico na tese também, que eu falo sempre no feminino e falo das avós, porque tem avós também, mas eles são franca minoria. Tem vários fatores que explicam isso, mas assim na média 80% do público que eu trabalho são das avós, seja porque os netos têm mais contato com as avós, seja porque as avós estão mais presentes nesse universo familiar, seja porque as avós têm mais proximidade, mais acesso para contar a própria história, enquanto os homens têm essa coisa mais carranca, mais fechado assim, por uma série de motivos, eu chamo de trabalho da avó, embora seja da avó e do avô. Minha tese é toda no feminino por causa disso que eu falo “eu entrevistei mulheres, eu recebi trabalho de mulheres, então o português que me desculpe com as suas regras tacanhas, mas eu vou fazer tudo no feminino. Então assim tem esse convite. O trabalho ele acima de tudo um convite para o contato, essa coisa da memória de aproximar, de criar a essência de comunidade e dele se perceberem nessa coletividade que é a família deles, que é a comunidade que eles pertencem, que é o lugar onde eles vivem. Não é essa história estranha que vem de outro lugar, é uma história que parte deles, né? Então assim a experiência da sala de aula de relatar o trabalho ela parte disso de eu falar “olha eu quero que vocês tenham contato”

Jorge: E para mim, enquanto professor, muito mais do que tá lá para ensinar alguma coisa para eles, eu tô lá para aprender com eles. Então eu falo isso para eles, eu falo “ó é o jeito de eu conhecer a sua história”. Então primeiro você vai eles fazem uma pequena biografia de umas cinco linhas para eu conhecer o que importante para ele, o que ele gosta. E assim, eu tô tendo esse primeiro contato, de primeiro bimestre, de início. Então eu preciso, enquanto educador, conhecer um pouco da história dessas pessoas que estão cruzando meu caminho, né? E aí, num segundo momento, vem o trabalho da avó que aí eu vou ampliar o meu olhar sobre eles. Atualmente que eu tô trabalhando na Asa Norte, eu tenho uma questão de público diferente. Porque lá no Recanto, a comunidade vivia em volta da escola o público que eu atendia na escola era formado por pessoas que não moravam exatamente em volta da escola, eu trabalhava na quadra 308 e atendia um público principalmente das quadras 500, que é uma área de expansão do Recanto das Emas que é uma área já formada a partir de 99 é uma área assim periférica dentro do próprio Recanto, e é uma área que, por exemplo, o público da área onde a minha escola ficava tinha resistência a essa outra comunidade vendo eles como oriundos das invasões, sendo que todo o Recanto das Emas é formado num processo de busca por moradia, de luta pelo lote pelo sonho da Habitação

Enxerto: O Recanto das Emas surgiu de um programa de assentamento do então governador da época Joaquim Roriz no ano de 1993. O lugar era de uma associação de sítios arqueológicos existentes designado Recanto. E era cheio de arbustos canela de ema o que originou o nome da cidade.

Jorge: Então há um conflito interno dentro do próprio Recanto das Emas ao ponto das quadras 500 serem chamados, de a região ser chamada de Taubaté, da questão das casas de tábua e tal. E aí tem até uma própria reapropriação por parte dos Estudantes que moram na área. E aí transformam essa coisa pejorativa, eles ressignificam isso de uma forma a empoderadas. É um empoderamento dentro desse contexto periférico assim, mas há uma relação dessa dentro do próprio Recanto, mas ainda assim meus estudantes moravam a 1 a 2 km da escola no máximo. Enquanto que aqui na Asa Norte, 70% do público que eu atendo vem de fora do Plano, então não tem como eu fazer, por exemplo, a história da quadra onde eu trabalho para conectá-los, porque a maioria deles não mora na quadra, não mora nessa zona da cidade. E aí eu faço a história da escola. Hoje em dia eu faço esse mesmo trabalho da história dos avós da história deles, mas o ponto de encontro de cruzamento dessas histórias não é mais a cidade, é a escola. Isso redimensiona um pouco a forma de lidar com as memórias, mas ainda continua sendo, digamos, o norteador principal do meu trabalho, essa ideia da história deles, que eles vão costurando em várias camadas e a história das avós é a minha parte favorita dela.

Juliana: Escutando você falar antes sobre a memória, eu fiquei pensando aqui que a nossa Temporada é sobre patrimônio material e material. E é muito fácil, quando a gente vai falar de patrimônio, pensar em monumento. E você está trabalhando com uma coisa que é realmente imaterial. E aí eu queria pedir para você explicar por que é relevante a gente pensar nas memórias

Jorge: Na tese, assim, a minha tese é uma das melhores experiências da minha vida. Eu sei que muita gente sofre com o doutorado, o doutorado vira um uma luta, um sofrimento para ele acabar. O doutorado foi a experiência mais rica da minha vida assim, eu quase não queria que tivesse acabado. E assim eu cresci muito o meu olhar. Como eu mencionei antes, essa coisa assim de perceber não a memória como um objeto da história ou simplesmente como um documento como a galera mais restrita ainda enxerga, mas assim a gente perceber a memória como uma área de saber assim, era o que a professora que Cléria mais me cobrava digamos assim nesse sentido de perceber como essas duas áreas já logo assim, profundamente tá assim. A história, muito mais do que se debruçar sobre a memória, ela precisa se envolver pela memória, eu acho que a gente tem que saber se envolver com a memória e às vezes se deixar levar um pouco, senão você perde muita coisa. Por exemplo num trabalho deste como o trabalho com as avós. Mas logo que eu cheguei para fazer a tese, a minha proposta inicial, o pessoal falava assim: “olha desculpa, seu trabalho não é um trabalho de história. Vai para educação. Vai lá para a faculdade de educação e vai fazer seu trabalho lá porque seu trabalho você quer analisar os trabalhos dos seus alunos, isso não é trabalho de história”. Eu bati o pé, fiz questão de afirmar a pertinência do meu trabalho dentro da área de história. Isso digamos assim exigiu de mim também algum crescimento em relação de perceber, por exemplo, que realmente os trabalhos dos alunos não seriam suficientes para tudo que eu estava me propondo a fazer, seria interessante que eu mesmo entrevistar se algumas das avós. E aí eu tive também além desse trabalho de mergulhar na memória. Eu também tive que descobrir como trabalhar com a metodologia da história oral também. Eu não, não tinha domínio nenhum.

Jorge: Fazia esse trabalho com os estudantes em sala de aula, mas eu mesmo, apesar de eu passar um roteiro para eles, passar algumas orientações, eu não tinha experiência de trabalho com a metodologia da memória oral, nem tinha muito bem definido, o que era a história oral para mim, por exemplo. E aí também foi um esforço do duplo, digamos assim. São coisas que caminham muito próximas de mão dadas, mas foi um esforço duplo nesse sentido. E conforme eu fui trabalhando com a história oral, eu também fui aprendendo. Então assim, todo o processo do doutorado, ele foi um processo de aprendizado assim tão profundo, tão intenso, de uma riqueza que eu nunca mais fui o mesmo depois dele. Tenho muito orgulho da tese que eu produzi e acima de tudo porque no fim das contas quando eu ia entrevistar as pessoas, as avós, elas ficavam tão gratas, elas ficavam tão felizes assim, elas me serviam café, me serviam suco, me serviam um bolo e me contava uma história delas e no final elas me agradeciam. E eu falava pra elas: “mas sou eu que tenho que agradecer vocês estão me emprestando a vida de vocês para poder fazer o meu trabalho”. Que em um certo sentido eu sou o estranho, o cara que vem de fora para fazer alguma coisa com isso aqui, quem contou a minha tese são as avós, não sou eu, eu sou um cara que se beneficiou de todo o relato delas. Era um processo assim tão generoso da parte delas, eu entendo, mas tão profundo, porque muitas vezes quando elas trazem essas histórias de vida, essas lutas, esses conflitos que elas viviam, elas mesmas estavam ressignificando e retrabalhando coisas da vida delas com as quais elas não queriam lidar. Durante a tese eu exploro até algumas coisas assim, coisas que eu na vivência com estudantes não tinha, não sabia. Tem um estudante meu que eu entrevistei a avó dele, que é um estudante que foi muito próximo de mim. Ele já é falecido, ele era estudante que tinha a AIDS e era criado pela avó. E eu fiz muita questão, Felipe Eduardo, assim sou muito saudoso dele, falo o nome dele, porque lembrá-lo é fazer com que ele exista, né? Eu tinha uma relação muito profunda com ele na escola. E aí fiz questão de entrevistar a avó dele e eu vivi muitos anos como professor dele na escola

Jorge: Achando que a mãe dele era falecida, e foi só na entrevista com a avó que descobri que, na verdade, a mãe dele estava viva e tava pelo mundo assim, tinha abandonado ele, mas ele vivia a vida como se a mãe não existisse, falava dela como se ela fosse falecido. E a própria avó nunca mencionava ela no contato de escola, mas na entrevista a história dela, que era uma coisa muito significativa na história da mãe, da avó do meu aluno, fez com que ela ressurgisse. Porque assim a memória não é uma coisa assim objetiva, né? O relato, ele tem uma vida própria. Então quando as pessoas começam a contar isso leva elas pra lugares que muitas vezes elas nem esperam, né? Eu acho que a riqueza da memória tá um pouco nisso também assim, porque ela dá significado para as coisas. Ela traz uma profundidade, uma densidade, um colorido para a história, que isso na sala de aula, traz os estudantes, faz ele se sentirem envolvidos pelo processo e faz ele se sentirem sujeitos desse processo. Não é uma história estranha que não tem nada a ver com eles, é a história deles e a partir deles, eles começam a perceber com toda a história tá tecida, né? Uma grande rede, tudo conectado assim, muito sentido. Acaba também que a gente vai produzindo eu chorei um pouquinho aqui porque sou muito chorão, viu? É no dia da Minha tese do livro da defesa da tese eu chorava, chorava, chorava. Assim porque o meu objetivo também não era essa tese virar um livro empoeirado numa estante da UnB. Eu queria muito que ela voltasse para a comunidade que gerou ela, por isso que eu fiz questão de voltar para a mesma escola porque eu precisava voltar para cá, eu precisava pensar todo um plano de aula um planejamento de aula baseado em tudo isso que eu fiz na tese porque agora eu tenho tanto mais história para contar. E aí eu precisava fazer um projeto político pedagógico da escola articulado com essa tese que foi escrita para a gente fazer essa comunidade contar a história dessa escola e não a escola tá aqui fechada, só fazendo uma festa junina e recebendo os filhos dessa comunidade, não. Essa escola ser realmente um polo transformador dessa comunidade. Então assim, nesse sentido, valorizar um patrimônio que tá lá e muitas vezes, ele está escanteado, ele está silenciado, ele tá perdido nessa aceleração da vida que fala para as pessoas que isso é uma coisa menor, que não é importante, que elas não têm direito a isso. Só que nesse mesmo ano que eu voltei militarizaram a escola. Eu voltei em 2018, tive um ano de trabalho lá, aí, no final de 2018, a gente sabe o que foi o projeto da eleição de 2018, né? E aí em todo aquele clima que estava o Brasil, o Distrito Federal e o Recanto das Emas, em janeiro de 2019, pelo DFTV, eu descobri que a escola ia ser militarizada, porque o diretor da Escola fez isso por baixo dos panos sem a gente saber. E aí a gente se reuniu, a gente resistiu, a gente tentou.

Enxerto: o que nós queremos é um batalhão escolar forte, equipado. Nós queremos a polícia militar sim, mas do portão da escola pra lá, do portão da escola pra lá. Nós professores não vamos fazer o papel da segurança, então a gente não admite que a segurança faça o nosso papel

Jorge: Tem reportagem minha no DFTV brigando para não militarizar a escola, tem entrevista minha num monte de jornal. A gente conseguiu fazer uma votação, mobilizando os estudantes. Assim minha escola é a única que teoricamente não perdeu a votação para ser militarizada, — única não, a do CEF 7 da Ceilândia também — mas mesmo assim ela foi militarizada. Aí eu saí, não… me recusei a ficar trabalhando lá durante a militarização, mantive contato com os estudantes, tenho contato com os estudantes até hoje. E aí eu mudei de escola no Recanto e eu fui pro CEF 13, que fica a 1 km do CEF 308. E cara, é uma coisa muito surreal da minha vida isso, porque eu tinha entrado lá uma vez assim de olhar a escola, uma escola muito mais nova que a minha, era uma escola que atendia um público muito parecido com o meu porque ela era muito próxima. Na verdade, ela atendia o público da minha quadra, já que o público da minha quadra saía porque vinham os mais periféricos, o CEF 113 atendia ao público mais próximo ali das 300 e das 100, que eram as quadras mais antigas. Então tinha uma comunidade mais antiga, mas estabelecida, só que fui para lá num processo de depressão profunda, que eu tinha perdido a minha escola. Eu fiquei no CED 308, eu fiquei lá quase 10 anos, eu aprendi a ser professor lá, né? Aí quando eu fui para o CEF 113, o CEF 113 me recebeu muito bem, muito bem, e era uma escola incrível, era uma escola assim que eu nem imaginava que ali do meu lado pudesse ter uma escola tão bem estruturada, tão transformadora como era lá. Aí tudo isso que sonhei, porque quando eu cheguei no 308 logo que voltei do doutorado, eu fiz, mas eu fiz por um ano e eu fiz experimentando, no CEF 113, eu já cheguei com esse processo e experimentado do ano anterior do 308. Acho que foi talvez o meu ano mais transformadora assim com a minha proposta de trabalho lá no Recanto. Mas que, ao mesmo tempo, eu estava nesse processo de depressão assim profundo, profundo mesmo. Eu passei seis meses assim que eu não tinha ânimo para nada e, mesmo assim, tava lá dando aula e tal. E aí as crianças me salvaram, né? Então assim, eu sou muito grato

Leyberson: parece que você, lendo e vendo o que você está falando agora, parece que, de alguma forma, contar as histórias ali dentro, a história do Recanto das Emas, meio que revela ou joga na cara uma questão de desigualdade social e dessa luta constante que são as pessoas que moram lá, né? Ou que foram morar lá, né? Assim, parece que a maioria vem de migrações de busca moradia e parece que isso tá muito interno nas casas das pessoas e das famílias, né? Então eu queria que você pudesse destacar um pouco como que isso aparece num texto, se chega, inclusive assim, você vai ler a história de uma avó, só que no final das contas você começa a se revoltar com as estruturas e tudo mais, se chega nesse nível, E, a partir dessas leituras, que são 3.000 já, o que você consegue desenhar da história de do Recanto das Emas né? Porque você é um cruzeirense que ia de carro até a escola, e aí você foi construindo uma visão do Recanto das Emas, que provavelmente não é a mesma das avós. Mas como é que é? Como é que você poderia hoje fazer alguns recortes desse Imaginário do Recanto que você viveu? E Como contar a história do Recanto a partir do olhar que você ouvia das pessoas?

Jorge: Eu sou nascido no Distrito Federal. Como eu falei para vocês, morei 35 anos no Cruzeiro e tal, mas eu aprendi muito não só sobre o Recanto. Nesse processo de conhecer o Recanto, eu conheci muito mais da história do Distrito Federal assim, mas num nível muito mais profundo. E a história do Distrito Federal, assim como a história do Brasil, é uma grande história sobre desigualdade, né? A gente vive nesse país imensamente desigual e talvez em nenhum lugar como o Brasil essa desigualdade ela é tão acentuada no sentido de que assim a gente tem uma riqueza extra vinda da questão do poder público, né? Do Governo Federal estar alocado aqui. Mas, ao mesmo tempo que a gente tem esse cinturão de miséria, esse mar de excluídos que cercam essa ilha de modernidade, né no meio do planalto central. Então assim, em 93, quando o Recanto é construído, ele é parte do projeto político do então Governador Joaquim Roriz de elegeu o seu sucessor, né ou então Senador Valmir Campelo, mas assim ele não consegue, mas ele tá tentando reproduzir um processo que ele tinha feito em 89 com Samambaia e tinha dado certo e tinha levado ele a ser o primeiro governador eleito do Distrito Federal depois da nova constituição, né? Ele era um governador biônico antes escolhido pelo então Presidente dessa Sarney. E aí ele vai se aproveitar desse intenso processo que na tese eu chamo de “espaço de morar”, né da busca das pessoas por um espaço de morar, desse direito, né das pessoas terem um lugar de viver, de procurar uma vida melhor, né? Isso é uma coisa que atravessa todos os três mil trabalhos. As pessoas estão sempre sonhando com algo melhor, as pessoas estão saindo da Bahia, do Maranhão, do Piauí para vir atrás de um sonho de uma oportunidade de dar uma educação melhor para os filhos, de conseguir um trabalho, estão sendo trazidos por familiares que falaram “vem para cá, porque aqui tem oportunidade”. E assim, se a gente for pensar, isso é a história do Brasil no século XX assim, Brasília viram uma etapa desse processo, né? Mas antes é o Rio de Janeiro, é São Paulo, é Belo Horizonte, os grandes centros urbanos, antes é Recife. Isso é morte de Vida Severina assim, eu trabalho, é um livro que eu trabalho com os meus estudantes, no oitavo ano meus estudantes leem. Porque eu falo para eles “galera, isso aqui é o sumo do Brasil”. É a história dos avós deles, essas pessoas que estão migrando em busca de uma vida melhor, essa história que eu conto, ela já foi contada e recantada muitas e muitas vezes. Eu sou só mais uma pessoa contando e recontando ela. Longe de mim ter a poética de um João Cabral de Melo Neto, mas assim, os meninos têm, as avós têm porque a vida é de uma riqueza a vida dessas pessoas, ela traz coisas assim. Por exemplo, tem um relato de uma das avós que morava no Pará e ela me conta como ela passou dias viajando numa carroça com um filho moribundo porque o menino estava agonizando e a única esperança era chegar na cidade, e a poucos métodos dela chegar na cidade o filho falece. E aí o compadre dela, dono da Carroça fala para ela: “e agora comadre, a gente ainda entra, a gente ainda vai? Ela “não agora não adianta mais, agora vamos voltar para casa”. E ela passa mais dias viajando com o cadáver do filho dela no colo. Então assim o Brasil é isso, essa desigualdade. Isso tá no Recanto das Emas e muitos níveis, isso tá no próprio conflito entre os moradores que percebem os moradores que chegam depois como os Invasores, como os marginais, como aqueles que trazem a violência. Porque se em 93 o Recanto é criado, ele vai sendo ampliado a cada novo governo na sequência o Roriz não elege o seu sucessor, mas entra o governo Cristovam Buarque, e o governo que se torna um Buarque continua o processo de formação do Recanto das Emas, seja ocupando novas quadros, sendo trazendo serviços públicos para as áreas que já estão construídos. Então assim, essa desigualdade está em cada lote lá. Só que, ao mesmo tempo. Aí eu vou falar para vocês até um conflito que tive dentro da construção da tese, porque o ex-governador Joaquim Roriz, ele é muito amado e celebrado pela maioria desses avós. Ele é visto como um Salvador da Pátria, ele é visto como uma pessoa que amava aos pobres e que olhou por eles, e que deu os lotes para eles que deu o lugar que eles moravam. Isso foi um conflito para mim, porque eu não queria, de modo algum, no meu trabalho ficar endeusando figuras políticas. E assim, eu mesmo tinha um olhar muito crítico sobre esse processo de formação de várias da cidade de satélites do Distrito Federal. Quem em 93 ele não queria só o Recanto ele queria o Riacho Fundo, ele cria Santa Maria, São Sebastião vai ser reconhecido nisso, então assim, a gente sabe como isso é um processo muito utilizado de uma maneira populista para com o objetivo de conquistar voto

Enxerto: populistas são os movimentos que tentam criar uma conexão direta entre um líder carismático e a massa da população, passando por cima dos limites institucionais. Faz parte dessa estratégia usar uma separação simplista entre o povo e a elite. Para os populistas, o povo é uma entidade idealizada e moralmente correta, enquanto a elite é sempre corrupta e aproveitadora.

Jorge: O Roriz não inventou esse processo, mas ele se beneficiou muito disso, e ele é um cara que conseguiu deixar, digamos, o nome dele gravado na cidade, né? Quantos restaurantes comunitários chamados de Rorizões a gente não tem? Ou estádios, ou viadutos? Então ele tem esse fantasma, digamos assim pairando ainda na carne de concreto da cidade. E para mim foi um conflito, eu tive muitas conversas com a meio orientadoras sobre isso. Porque, ao mesmo tempo que eu não queria fazer uma coisa, quem era eu para combater o que estava sendo falado, lutar contra aquilo que estava sendo falado? Paralelo a isso eu vou ampliar, eu tive uma crise muito grande porque meu orientadora diversas vezes falava para mim: “olha você tá acreditando demais na história que a pessoa tá te contando, você tá se perdendo, você tá virando um fã da história e você tá indo nela e tá esquecendo que você tem que fazer a crítica”. Aí, ou seja, eu tive que, por exemplo, ir buscar o conceito de populismo e trabalhar ele dentro da tese para, ao mesmo tempo que eu fazia a crítica de como havia uma relação de poder muito fortes que atravessavam a própria relação centro-periferia da formação daquela cidade envolvida nesse processo, ao mesmo tempo que eu não podia deixar de realmente colocar a forma que as pessoas se referiam a ele, a relação que elas construíam com a imagem que ele deixou. Nossa, como eu sofria com isso porque as pessoas me recebiam na casa delas, emprestava, a vida delas

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Me davam café, suco e bolo e depois eu ia lá para descascar a história delas? Foi um conflito que me atravessou durante a tese inteira, isso. E uma coisa até, por exemplo, eu não poder usar o nome das pessoas. Eu queria falar que eram muitas Marias que estavam me contando as histórias e nas histórias das Marias, apareciam muitas outras Marias, porque elas tinham mães Marias, tias Marias, irmãs Marias filhas Marias, mas assim eu precisei aprender muito sobre o Distrito Federal para poder dialogar com essa história que estava irrompendo na minha frente a partir dessas memórias. E, quanto mais eu percebia junto com os estudantes, mas a gente via ele se sentindo pertencentes àquele lugar que eles viviam, porque assim por um lado eles estão em Brasília e por outro lado eles não estão. Brasília é aquela coisa distante, Brasília não é o lugar onde eles vivem. Quando eles saem e eles viajam para algum lugar, as pessoas perguntam para eles como é Brasília e, ao mesmo tempo, eles estão excluídos e marginalizados dessa Brasília. Desse centro que se veste de Brasília, né?. Porque essa ideia da Brasília do sonho e do JK, ele silencia e eclipsa um monte de outras Brasílias, e o Recanto das Emas era algo perdido e escondido nesse contexto todo. Ao mesmo tempo, tem essa relação interna da marginalidade que eu falei, do morador mais antigo que vê o morador que chega como invasor. E aí você ainda tem, por exemplo, as áreas rurais. Porque assim, outra coisa que aprendi é: a história do Recanto das Emas não começa em 93, na verdade, ela começa nos anos 60 com a Vagem da Benção e o Monjolo, que são duas áreas rurais voltadas para a produção de alimentos desde o período da construção da cidade. Então essas áreas vão ser depois loteadas e ocupadas inicialmente de maneira irregular, para depois vir oficialmente, aí então Cidade Satélite, né, mas depois essa região administrativa do Recanto das Emas. E tem também uma relação assim dos moradores atuais não perceberem essa, digamos, essa antiguidade da cidade.

Juliana: eu tenho uma última pergunta, que eu fiquei ecoando aqui o que você falou sobre você estar acreditando muito na história que eles estão contando. E aí eu lembrei que você disse que teve uma mesma avó tendo a história contada por netos diferentes, ou anos diferentes e aí eu queria saber… eu sei que não tenho certo errado, mas se você percebeu diferença ou semelhante, ou casos curiosos quando era a mesma avó, mas outra nela contando.

Jorge: Então, essa avó que eu falei, na verdade, eu dei aula para cinco netos dela. Então o mais comum é que eu tivesse mais de um trabalho da mesma avó. Porque assim, tanto irmãos quanto primos, era muito comum eu dar aula para estudantes da mesma família. Tem família assim que eu dei aula para cinco filhos acima da mesma família, porque, como eu fiquei lá quase 10 anos, às vezes eu pegava assim aqueles encadeados um depois do outro e dava aula para todo mundo e todo mundo fazia o trabalho da vó. O trabalho da Avó, eu garanto para vocês, nenhum aluno, nenhum, nenhum, nenhum, passa por mim sem me entregar esse trabalho. Pode até não entregar no primeiro momento, mas aí eu vou criando estratégias para o trabalho chegar na minha mão. Às vezes passa do momento lá da síntese em que a gente faz junto, chega depois na minha mão e ele é um trabalho que é feito e refeito. Você fez o trabalho? Você vai tirar a nota máxima. Por que quem sou eu para dar uma nota na para a vida da sua avó? A vida da sua avó já é nota máxima, então o que eu corrijo no trabalho? Erro de português. É um processo de ir e voltar e tal. E assim, uma coisa que eu acho muito importante as coisas de trabalhar com eles a leitura, escrita e tudo mais. E aí eu acabo recebendo muito trabalhos e esses trabalhos são muitas vezes feitos e refeitos e acontece, por exemplo, já aconteceu e tem isso na tese de eu ter irmãos que um irmão era repetente e a irmã era um ano depois né? Então eu dei aula pros dois no mesmo ano, os dois estavam no sexto ano porque o irmão era repetente um ano. E aí eles estavam em turmas diferentes. E aí a irmã fez o trabalho, o irmão foi lá e copiou, e me entregou mesmo no trabalho. Isso aí eu falava isso para eles. “Ó, não adianta você copiar porque eu leio todos os trabalhos”. Faço questão de ler, adoro ler, leio, releio, rabisco e tal. Então eu percebi que era copiado, dei zero pros dois, chamei os dois, falei “ó zero para os dois”. Aí a menina, ela falou para mim assim “não professor, fui eu que copiei, eu vou fazer outro”. Eu falei “não adianta você tentar me enrolar não, que eu sei que foi ele”. Que ela ainda foi boazinha de tentar proteger o irmão. Aí eu falei” ó, não tem problema” porque assim. Aí ele falou “ah, professor, mas como que eu vou fazer outra história? É a mesma história”. Eu falei “não é, cara, quando você conta a história da sua avó, não é mais a mesma história, por isso que o seu trabalho não vai ser igual, a sua avó pode falar no mesmo momento para vocês dois e a história que você está processando na sua cabeça e que a sua irmã está processando na cabeça dela já não é mais a mesma história, e se vocês dois me contarem a história eu vou receber coisas muito mais ricas do que se eu só tiver o mesmo trabalho duas vezes”. Então, eu acho que isso é um caso muito exemplar. E aí o que aconteceu? Quando eu fui fazer a tese, a avó deles é uma avó que eu entrevistei. E ela é a única criança que entrevistei duas avós. Eu entrevistei tanto a avó materna, quanto a avó paterna porque eu tinha o trabalho… porque o irmão no fim das contas ainda tem amor e falou “não, não vou fazer da minha avó que minha irmã já fez vou fazer da minha outra avó, a mãe do pai” e aí eles se me entregaram um cada um trabalho de uma voz diferente, porque é um episódio engraçado da tese isso. Eu entrevistei a avó primeiro, e aí eu tinha muitas avós já entrevistadas, já tinha oito avós entrevistadas e não tinha entrevistado nenhum homem. E aí, apesar dos homens serem franca minoria, eu queria entrevistar pelo menos um avô e aí eu falei com a menina e ela falou “não, professor, meu avô dá entrevista pro senhor”. O avô paterno. E aí eu fui para o Recanto, a mãe dela foi comigo, ela não foi que ela tinha balé e tal. Na hora que eu pisei no portão da casa que eu passei a mãe foi na frente, eu já escutei o avô gritando lá de dentro: “Entrevista? Eu não vou dar porcaria de entrevista nenhuma, pode mandar esse homem embora que eu não quero saber de entrevista coisa nenhuma”. Eu já “nossa, perdi a viagem, já era, não vai ter jeito”, mas entrei na casa, que era lá na 203. Aí quando eu entrei na casa o senhor bem carrancudo assim bem “Ah, o senhor pode virar as costas, pode ir embora, eu vou falar nada” e um monte de gente estava filho, sobrinho, né, gente correndo, a casa cheia de gente e o velho me destratando assim e “pode ir embora”. Aí a esposa dele ficou tão constrangida que ela falou assim “não, professor, faz o seguinte, para o senhor não perder a viagem, pode deixar que eu dou a entrevista pro senhor”, eu falei “beleza, ótimo, tudo bem, eu agradeço obrigado, vai ser ótimo do mesmo jeito”. Aí liguei o meu equipamento, fui preparar a entrevista, ela começou a contar as coisas. Dois minutos de entrevista ele começa: “não não não não, não foi desse jeito não, essa outra coisa foi de tal e tal jeito”. Aí ela “não, você fica quieto aí que você não quis dar entrevista, agora você não vai meter o pitaco na minha entrevista não”. Só que ele tava lá, então ele passou a uma hora de entrevista o tempo inteiro intervindo na entrevista dela, de ter momentos dele roubar a fala, dele passar cinco a 10 minutos contando a história. E eu adorei, porque no final é uma das entrevistas mais ricas que eu tive, porque eu tenho duas pessoas não só dando seu relato, como uma confrontando o relato da outra. Essa é uma única entrevista que eu tenho porque, no fim, um dos avós homens que eu entrevistei, na verdade, é uma entrevista mista, né? Por isso que eu fiz 10 entrevistas, mas foram 11 entrevistados, na verdade, porque essa é uma entrevista dupla. Então assim, mesmo quando eu recebi cinco trabalhos de uma avó, cada trabalho era uma nova história da avó, era uma nova dimensão, era uma nova representação, era um novo olhar sobre aquele relato. Tanto porque no ano seguinte quando acontecia a avó não contava a mesma coisa que ela contou para o outro ou como se acontecia no caso, eu contei, eu sei que mesmo quando duas pessoas escutam o mesmo relato, elas não vão processar aquilo da mesma maneira e elas não vão ampliar, reverberar da mesma forma. Então a gente sempre compõe esse mosaico assim a partir da gente né? Então a história da avó que chegava nele, que ele trazia pra mim, ela ganhava novos contornos, ela ganhava riqueza, ela era sempre escrita e reescrita, contada e recontada. Por isso que eu coloco lá o Recanto de Memórias, porque tanto é o Recanto do Recanto quando esse eterno o processo de contar e recontar que a gente fica fazendo

Leyberson: Bom, eu queria te fazer uma pergunta e deixar o microfone aberto para você fazer uma palavra final, que é se você pretende, se você tem alguma intenção de transformar isso numa antologia das avós, né? Assim, com as melhores histórias ou de alguma forma o Recanto das Avós, os recontos das avós. Tem algum plano em mente nesse sentido? Porque são muitas histórias pelo visto muito ricas e também deixar o microfone aberto para você.

Jorge: Eu vou te falar sendo bem sincero porque eu nunca pensei nisso. E aí é uma coisa, eu não quero soar presunçoso de maneira nenhuma assim, mas eu sou um professor muito bom. Modéstia à parte faço muita diferença lá na sala de aula e muita gente fala para mim assim: “Ah, por que você não publica sua tese?” Eu falo, “ó, minha tese está lá na internet, qualquer pessoa que queira ler minha tese, ela está disponível, ela é pública, eu não tenho essa vaidade de ter o livro publicado”. E assim, eu sei que talvez tornasse ela mais acessível ainda e tal, lá na biblioteca da UnB tem algumas, na biblioteca da Secretaria de Educação tem algumas, aqui na IAP, mas assim, eu te juro, eu guardo todos esses trabalhos porque eu tenho muito essa coisa do guardar. Minha esposa fala que eu sou acumulador, na verdade, né? Porque eu guardo trabalho de aluno, eu guardo prova. Para dar um parâmetro para vocês, atualmente que eu trabalho com oitavo e nono ano eu guardo tudo que os meus estudantes fazem comigo do início do oitavo até o final do 9º. Trabalho, prova, todas as atividades. E no final do nono ano, quando a gente tem a última avaliação em conjunto, assim a última conversa, eu dou a devolutiva e entrego tudo para eles de volta. Então assim, tirando o trabalho das avós, o trabalho das avós eu falo para eles “o trabalho da vó vai ficar comigo”, mas toda, tem alguns que pedem para tirar cópia. Já aconteceu o caso, por exemplo de uma aluna minha, ela for muito turismo ano passado, ela me chamou para ir a ver a defesa da monografia dela, foi sobre turismo pedagógico lá na faculdade de turismo aqui da UnB ela “ah meu professor do sexto ano tá aqui” e tal foi muito emocionante assim. E ela me entrevistou para a monografia dela, ela foi minha aluna em 2011 e 2013, quando foi em 2017, eu acho que ela tava no ensino médio, a avó dela que ela tinha feito o trabalho, tava com Alzheimer, já não estava se lembrando de mais nada. E ela entrou em contato comigo e falou “professor, você ainda tem o meu trabalho da Avó? Eu queria ler ele para minha avó para ver se dá um estalo, se desperta alguma coisa nela”. Aí eu precisei procurar né, ir lá na minha papelada, nas minhas pastas. Achei o trabalho para ela, ela passou aqui. E aí, por exemplo, esse é um trabalho que eu não tenho o original. Eu que tirei a cópia e fiquei com a cópia e dei o original para ela levar e mostrar para a vó dela. Isso para mim não tem livro nenhum que… quando eu digo assim que eu sou um cara muito da prática, eu sou muito também um cara do encantamento. Então, tudo que eu poderia te dizer de riqueza que eu extraio desse trabalho transborda lá na sala de aula. Seja na sala de aulas que eu passei no Recanto, seja na sala de aula que eu estou agora. E assim, eu hoje em dia tenho um projeto de ficar nessa escola que eu tô, então eu imagino que vai continuar transbordando por lá por um bom tempo, né, mas assim eu entendo o que você fala assim, porque realmente tem trabalhos como eu disse assim de me fazer chorar tem trabalhos com uma riqueza, por exemplo, tem um trabalho muito legal de um estudante meu que foi meu aluno em 2018, nesse ano que eu voltei depois da licença antes da militarização, quando ele me entregou o trabalho a avó dele fez um relato tão mágico sobre como ela e o avô dele se conheceram no dia do Massacre da GEB no acampamento da Pacheco Fernandes

Enxerto: acontecido em 8 de fevereiro de 1959, durante a construção de Brasília, o Massacre da Pacheco Fernandes leva esse nome, pois aconteceu no canteiro de obras da empresa, ali na região da Vila Planalto. No Episódio, 27 Soldados da Guarda especial de Brasília, a GEB, atiraram contra candangos até hoje sem nenhum motivo aparente ou nenhum motivo indicado. Mesmo mais de 60 anos depois, a história do massacre ainda é muito nebulosa e as versões oficiais contrastam com as versões das testemunhas. Na versão oficial, houve uma morte e 48 feridas. Mas algumas testemunhas falam em dezenas de mortos em mais de 100 corpos que nunca foram encontrados

Jorge: O avô era segurança do acampamento e a avó era tipo cozinheira, lavadeira de um dos Engenheiros. E aí quando aconteceu o massacre o avô entrou lá pra evacuar a casa para tirar, “ó, sai, tá acontecendo uma confusão”, e tirar as pessoas de lá e ele se conheceram nesse dia e aí começaram a namorar, casaram e tal. Eu falei para ele” cara, isso aqui é um documento sobre o processo da história da construção de Brasília”. O que eu pude contar da história de Brasília para eles aquele dia a partir do trabalho dele. Só o trabalho dele virou uma aula, virou uma aula assim incrível. Não o trabalho dele, né? A experiência vivida pelos avós dele, né? Então assim, pra ser bem sincero com você, como meu foco é sempre muito sala de aula. Então assim, eu acabo não tendo, eu não corro atrás de publicar coisa, eu não me dedico à academia, meu único contato com a academia são esses estagiários que eu falei pra vocês que eu estou recebendo sempre então assim. A minha coisa é sempre mais no contato humano, mas assim como eu disse sem querer ser presunçoso, eu gosto muito da sala de aula, eu sou um cara muito apaixonado pela história, história é uma coisa que transformou minha vida em muitos sentidos, com todas as agruras que a vida de professor tem, que não são poucas. Ainda assim, eu acho que quando a gente se permite o encantamento e o encantamento se derrama sobre a gente também

Leyberson: Bom, só uma última pergunta. Algumas histórias estão na tese, né?

Jorge: O capítulo 2 da Minha tese é só sobre os trabalhos dos alunos. Porque no fim eu vi que eu precisava fazer as entrevistas, mas o que eu imaginava lá no começo que ia ser a tese, virou o capítulo 2 na Minha tese e nos anexos tem as transcrições

Leyberson: então assim, já que não tem aí o livro, pelo menos algumas histórias estão lá para serem vasculhadas

E na própria tese, também nos anexos, os trabalhos dos alunos que se referem às avós que foram entrevistados, tem 18 trabalhos de alunos que também estão anexados como documento na tese. Então tem alguns que estão lá realmente

Leyberson: já tem aí um material publicado para quem tiver curiosidade porque vai aguçando a nossa vontade de ler, de conhecer essas histórias, perfeito. Bom, então, Jorge, novamente muito obrigado pela sua contribuição e também pelo trabalho que você faz com essas alunas e alunos. E a gente encerra o episódio avisando Dazumana tá no YouTube e em várias plataformas de podcast como Spotify, Google podcast iTunes e rm 15 dias a gente vai voltar com o novo episódio, se vocês quiserem ver as sugestões ou até mesmo pedir o contato aí do professor com esse trabalho que ele faz, mande e-mail pra gente no voz@dazumana.com

Juliana: este projeto é feito com apoio da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal, governo do Distrito Federal e realização da Lei Paulo Gustavo, Ministério da Cultura e Governo Federal. É isso, até a próxima Dazumana, a ciência sem jaleco.

 

00:00 - BLOCO 1: CONHECER OS ALUNOS E O RECANTO
Chão da sala de aula
Alunos que ensinavam
Costurar as memórias
Metodologia

14:58 - BLOCO 2: IMATERIALIDADE
Memórias mudam
História oral
Satisfação das avós
Estudantes como sujeitos

22:25 - BLOCO 3: OCUPAÇÃO E COMUNIDADE
Tensão nas regiões de Brazlândia
Desigualdades sociais
Conflitos de pontos de vista
Trabalho feito e refeito

 

CRÉDITOS:

Enxerto 1 (comentário): ParoquiaSaoGabriel - Conheça Nossa História: Recanto das Emas e Paróquia São Gabriel Arcanjo ( https://youtu.be/GGtvYIgkBmk )
Enxerto 2 (comentário): Sinpro-DF - Comunidade escolar rejeita militarização do CED 308 do Recanto das Emas ( https://youtu.be/pXJlIKm69Rg )
Enxerto 3 (comentário): DW Brasil - Afinal, o que é populismo? ( https://youtu.be/FhR8EUM5e0g )

Materiais extra:

Tese “(Re)canto de memórias: histórias do Recanto das Emas e suas moradoras (1993-2017)” de Jorge dos Santos
http://icts.unb.br/jspui/handle/10482/32296

Livro “Historia Temática Tempos e Culturas - 6º Ano” de Conceição Cabrini e outros
https://www.estantevirtual.com.br/livro/historia-tematica-tempos-e-culturas-6-ano-3-edicao-0SU-3413-000

FICHA TÉCNICA:
Entrevistado: Jorge dos Santos
Pesquisa e locução: Leyberson Pedrosa e Juliana Mendes
Gestão e Produção executiva: Carolina Villalobos
Montagem: Gabriella Braz
Edição de som: Ricardo Ponte
Música tema: Ricardo Ponte
Tema do lattes: The Angels Weep de Audionautix
Design gráfico: Bárbara Monteiro
Ilustração: Juliana Mendes
Transcrição: Gabriella Braz
Janela de Libras: Brenda Kroslowsk
Redes sociais: Zizi Villalobos
Assessoria de Imprensa: Rafael Ferraz
Site: Marcelo Nogueira