Como o mundo digital influencia a pesquisa de imagens para documentários? O uso de acervos pessoais, familiares, públicos e de empresas garante conteúdo impactante para as obras. Gabriel F. Marinho, mestre em História pela UFF, fala sobre a migração de trechos de audiovisual de um filme para outro. Conversamos sobre como esses arquivos acionam a memória, revelam e apontam silêncios nas obras.
O Dazumana é um podcast informativo de divulgação científica. Comentamos fatos da vida para entender as teorias, sempre com finalidades educativas. Artigo 46 da Lei 9.610/1998.
Juliana Mendes: Olá, começa mais um episódio Dazumana.
Leyberson Pedrosa: E o programa de hoje é para aqueles apaixonados por documentários. Assistindo a esses filmes na tv ou no streaming, já se perguntou como os pesquisadores conseguem escavar fotos ou gravações impactantes que você nunca viu antes na vida. Pois então, muitas dessas imagens são imagens de arquivo.
Juliana Mendes: Elas podem estar em algum acervo público, privado ou até familiar. São instituições e pessoas que conhecem a importância de se registrar a história. E as imagens são ótimas para resgatar memórias que definitivamente não servem a uma única interpretação dos fatos. Quem vai falar sobre isso com a gente é o Gabriel Marinho. Oi, Gabriel, tudo bem?
Gabriel Marinho: Oi pessoal, tudo bem? Oi, Leyberson! Oi, Juliana! Super legal estar aqui com vocês, entrando aqui no Dazumana. Vamos falar sobre documentário sim, sobre verdades, sobre imagens de arquivo e também sobre algumas mentiras.
Leyberson Pedrosa: A gente vai transformar isso aqui para um arquivo de memória no futuro para conversar um pouco sobre o que os cientistas das humanas já fizeram e estão fazendo. Gabriel, antes da gente chegar para uma parte mais informal a gente tem um rito que é ler o currículo Lattes do convidado. E a gente conta que você é documentarista com bacharelado em Comunicação Social pela Universidade de Brasília com habilitação no curso então criado audiovisual, mestre em História pela Universidade Federal Fluminense com a dissertação: A migração das imagens: o uso de imagens de arquivo no cinema documentário brasileiro (1961-1984) o ano das diretas já. E a expertise do Gabriel é no estudo das imagens de arquivo como ferramenta narrativa, sendo esse seu principal campo de atuação como acadêmico, realização de curtas, longas-metragens e séries documentais. O Gabriel dirigiu filmes premiados como: Memórias finais da república de fardas e O Prólogo. Foi produtor executivo da TV Escola e sociodiretor da produtora audiovisual Totó Filmes. Atualmente ele é professor dos cursos de graduação de cinema áudio visual e jornalismo na ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), onde leciona nas áreas de televisão, cinema documentário e representatividade no audiovisual. E aí Gabriel enquanto eu bebo uma água aqui, tem mais coisas para você contar aí do seu currículo dessa trajetória?
Gabriel Marinho: Ah, eu acho que a parte acadêmica está bem pomposa, ela não é tão grande quanto parece aqui pelo que você está falando e também acrescentar-se aqui o trabalho e realização audiovisual ele segue com outras parcerias, acho que em especial a Villa-Lobos Produções, em que a gente está realizando outras séries e outros longas-metragens e também tem o podcast cinematógrafo que realizo com dois colegas queridíssimos que também nos conhecemos na pós-graduação quando estava na UFF.
Juliana Mendes: Certinho. Então para começar eu queria entender de onde que vem esse interesse por documentário? E aí tanto como realizador como acadêmico e em especial o cinejornal.
Gabriel Marinho: Acho que meu interesse ele é muito pessoal assim, acho que a maioria dos nossos campos de estudo, o vínculo que a gente estabelece com ele é na infância e na adolescência. E não foi muito diferente comigo nesse caso não. Eu sempre gostei muito de audiovisual, gostei muito de ver filmes, ver séries, ver televisão. Acho que o jovem Gabriel sempre estava indo para o cinema, vendo televisão, mas o interesse por documentário vai surgindo no final do ensino médio. Ele já era um estudante muito apaixonado por história e tinha uma leve dúvida, acho que sempre foi mais pro audiovisual, mas que eu deveria fazer uma graduação em História e professores de História começaram a passar algumas séries documentais para a gente em especial uma chamada: People's Century a tradução seria o século do povo.
Mário Soares: Em 1924 o décimo milionésimo modelo T saiu da linha de montagem. O departamento de publicidade da Ford tirou o máximo partido (lucro) da ocasião. O automóvel que fez a travessia de costa a costa, atravessou um país que estava a ser transformado pela linha de montagem móvel. Para a América dos anos 20 era o início da sociedade de consumo onde toda uma variedade de novos produtos ficou ao alcance das pessoas vulgares (comuns). Agora as fábricas produziam mobílias e pronto a vestir (roupas prontas). Os eletrodomésticos eram mais baratos do que nunca. O ciclo estava em marcha. A produção em massa alimentava o consumo em massa conduzindo a uma produção ainda maior. O rádio teve um impacto quase tão grande como o automóvel, trazendo a publicidade e a música popular para dentro de casa.
Gabriel Marinho: E eu fiquei fascinado pela série "nossa é isso que eu quero fazer, entrevistar pessoas sobre o passado delas e tentar reconstruí isso com aquilo". E quando eu entro na UnB eu já entro com esse desejo, só que na UnB não era algo que era estimulado em partes porque os cursos audiovisuais, não só no Brasil, mas em todo mundo eles refletem muito o grupo, é um grupo de pessoas que está realizando audiovisual e que vão crescendo juntos, fazendo disciplinas juntos. E eu caí em uma turma completamente do cinema de ficção como são a maioria. Então eu só fui realmente colocar a mão na massa no documentário praticamente no meu projeto final que aí sim, eu consegui trabalhar com cinejornal, consegui trabalhar com imagem de arquivo. Mas já nos últimos semestres na UnB eu comecei a sair um pouco da faculdade de comunicação é um privilégio que a gente tenha estudado na UnB, o fato de poder caminhar e ir para outros departamentos e lá eu consegui estudar algumas disciplinas que poderiam se comunicar mais com as minhas áreas de interesse, não só do departamento de História, mas tem um departamento de estudos interdisciplinares que foi aonde eu encontrei disciplinas sobre História no cinema e vídeo e aí eu fui costurando esse currículo que fazia sentido para mim e aí sim a partir desse momento eu acho que eu encerrei esse ciclo de obrigações disciplinares eu pude me dedicar a essa área que eu queria mais que é trabalhar com esse audiovisual do passado.
Leyberson Pedrosa: Mas vem cá Gabriel, a gente consegue contextualizar assim o cinema de arquivo, não é onde está guardado um monte de VHS do que já foi ao ar, não é? Um blockbuster, ah tem um arquivo. O que seria esse cinema de arquivo para quem de repente está ali assistindo um documentário ou até mesmo, não sei pode ser aplicado em ficção por exemplo?
Gabriel Marinho: Sim, super pode ser aplicado em ficção, a gente tem diálogos entre ficção e documentários. Tem um termo que eu acho bem mais interessante também que pensa em tipos no cinema é pensar na terminologia tradição, a gente tem uma tradição da ficção, uma tradição ao documentário, uma tradição da animação. E por que tradição parece uma palavra mais adequada? Porque a tradição ela fala sobre um conjunto de práticas de linguagens, conjunto de práticas de realização que é construir de consolidada a partir da frequência à medida que todo mundo está realizando aquilo e todo mundo está praticando aquilo, aquilo se torna uma prática comum daquele espaço. Mas não tem nada que efetivamente proíba um realizador de ficção de pegar elementos de documentário, pegar elementos da ficção. É muito mais por uma inércia de prática do que propriamente um muro tão fechado, talvez a grande divisão que a gente possa pensar quando a gente fala sobre cinema é pensar que existe o cinema que é esses modos de operar a narrativa audiovisuais e dentro dele a gente vai ter algumas tradições. A gente vai ter a tradição do sistema de ficção, o sistema de documentário e elas tem seus pontos de interseção. Então, sim eu vou conseguir para fazer vários filmes de ficção com elementos de narrativa documental você tem o Band of Brothers por exemplo ou então O mais longo dos dias que é um filme de guerra que fala sobre o dia D e é ao longo do filme ele vai pegando algumas imagens de cinejornais, se não me engano do cinejornal Why We Fight (Por que nós lutamos) e é magnífico que é um momento que você salta de um olhar da realidade e volta para um olhar da ficção e você também tem o contrário, você tem vários processos de ficcionalização dentro do documentário. E aí Errol Morris por exemplo é incrível em fazer isso em filmes com A Tênue Linha da Morte em que ele vai fazer um documentário sobre um sujeito que está para ser executado, não sei se é uma prisão norte americano e ele resolve a partir do depoimento dele, refazer, simular o assassinato no qual ele está sendo acusado. A partir desse documentário ele mostra que a simulação torna impossível que ele tenha matado a pessoa e o lançamento do documentário faz com que o caso dele seja reaberto e hoje ele está livre. Mas ele teve que usar um elemento da ficção para justamente se aproximar da realidade. Tradição é importante, no sentido de que para quem se reverencia, mas ela é importante para que você possa quebrar. Está bom e agora como que eu vou me livrar, vou quebrar eu vou subverter a esse espaço.
Juliana Mendes: Me corrija se eu estiver errada. Eu acho que Years and Years (Anos e Anos) tem imagens de arquivo e é uma série bem recente e ela é brinca com isso, associando a narrativa tradicional ao documental do que está acontecendo no mundo. A gente consegue quebrar essas tradições, inclusive do cinema de arquivo para experimentações para fazer coisas diferentes.
Gabriel Marinho: O interessante que a gente conseguir quebra ela com linguagem, não quebrar por quebrar porque ela também foi construída dentro de um espaço de coerência, mas isso também de conseguir perceber o quanto que ela te serve e o quanto que ela não te serve, você jogar com isso. Você deu exemplo do Years and Years que realmente usa imagens de arquivo durante a narrativa, você tem diretor brasileiro chamado Carlos Nader, que é incrível com isso. Quanto que ele vai experimentando o arquivo de uma forma ficcionalizada, criando histórias e narrativas que não correspondem aquele arquivo originalmente. O que faz com que você comece a pensar o quanto aquela imagem pode ser polissêmica. Por exemplo tem um filme dele que eu acho belíssimo A Paixão de JL, ele pega fitas cassetes do José Leonilson, artista plástico. Ele acaba falecendo decorrência a problemas com HIV no início dos anos 90. E ele vai fazendo um correspondente, por exemplo entre músicas da Madonna e músicas da cultura pop que estão ocorrendo naquele local e trechos do diário dele que é um diário sonoro. E aí você começa a rever aquela música ou rever por ele colocar alguns trechos do filme eu acho que era “Paris, Texas", também ao longo do filme para que você consiga ver aquele filme a partir dos diários do Leonilson, começa a reinterpretar o filme de outra forma. Então, isso é você usar arquivo é você usar o registro audiovisual que foi feito em outro contexto e com outro intento para dentro de uma outra narrativa.
Leyberson Pedrosa: A gente está num momento agora que lembra a sua dissertação que você traz a ele duas obras ali dentro do período ditadura que trabalham diferentes óticas. Uma mais progressista, não sei se eu poderia taxar entre aspas comunista e uma outra exatamente anticomunista. Na verdade, uma de reforma sociais e uma outra que é uma política um pouco mais conservadora ou também mais conservadora que você discute ali e faz essa análise. E queria que você fizesse esse link então assim da importância desse estudo que você fez, contar um pouco do que que é e como que é esse cinema de arquivo que você trabalhou, dialoga com esse momento onde a democracia ela está de novo sendo discutida de acordo com diferentes narrativas.
Gabriel Marinho: O rótulo é sempre complicado, a gente pensar em um filme como progressista ou em um filme como comunista, a gente acaba tendo que fazer uma pergunta subsequente para quem e para quando. É muito fácil cair em um certo anacronismo em relação a isso. Um filme como Jango seria considerado um filme comunista, depende do contexto, depende do momento que você está perguntando. Não sei se o diretor ia concordar hoje com essa afirmação ou concordaria com essa afirmação em 1984 quando foi feito e também não sei se as duas produtoras que realizaram os filmes O IPES que é a outra produção que a gente usa no polo extremo iam se ver conservadoras ou até golpistas como hoje a gente interpreta isso. Mas de fato a gente talvez possa dizer que a gente tem ali dois polos em relação ao governo Jango, a gente tem uma obra que está se posicionando claramente contraria ao Governo Federal querendo causar algum tipo de comoção ou tumulto em relação as propostas de reforma de base por exemplo. Se não derrubaram o governo Jango eu acho que sim que eles queriam derrubar, mas assim acho que ainda tem alguma margem para questionamento, mas se não derrubar, pelo menos enfraquecê-lo.
Narrador de cinejornal: O Brasil vive momentos difíceis. As manifestações populares tornam-se cada vez mais agressivas. A inquietação atinge os meios rurais. Os demagogos agitam a opinião pública enquanto a inflação desenfreada anula os melhores esforços dos brasileiros.
Gabriel Marinho: E uma outra obra que vai tentar reconstruir essa imagem, reconstruir uma memória do Jango de forma mais positiva. E o que eu acho mais bacana que acho que me chamou atenção é a ideia que a semântica, do significado da obra ela não está dada. Que tinha uma toda discussão sobre porque que a gente vai gastar um dinheiro público para guardar uma obra cujo valor de produção remete a um passado negativo nosso. Só que essa mesma obra vai ser recortada e vai ser reincorporada por uma outra obra para justamente dar base para uma outra ideologia, com uma ideologia inclusive concorrente daquele momento. O que sugere que a gente não é dono do significado das nossas próprias obras. Engraçado não é, hoje uma força também que a gente tem em rede social de alguns conteúdos de internet é muito dado que a gente perde controle da obra. Que a gente pode efetivamente criar uma imagem aparentemente positiva para um candidato, depois ela ser reincorporada com algumas pequenas mudanças e elas se tornarem negativas. E a gente tem ideia de que a gente vai perder o controle, mas isso não era bem dado para quem estava trabalhando com audiovisual nesse período que já era realidade por não ser tão recorrente isso sempre chamava atenção "nossa como é que você consegue pegar essa imagem e reincorporar em outra narrativa e mudar o significado?" Mas isso já antigo assim, você vai pegar por exemplo os filmes da Leni Riefenstahl fez na década de 1930 em prol nazismo, eles vão ser usados em vários documentários antinazistas para falar mal do regime. E eu queria muito trazer esse evento acontecendo no Brasil um outro que imagens produzidas para enaltecer o golpe de 1964 o pré golpe de 1964 os eventos que vão acontecer imediatamente antes, vão ser depois usadas para você conseguir construir uma imagem negativa desse momento de questionador e crítica desse momento. A imagem ela não tem nenhuma, imagem eu estou falando de audiovisual então imagem e som, ela não tem nenhum compromisso com o seu realizador. Você está gerando uma imagem você está gerando um conteúdo inclusive aqui a gente está participando de um podcast para enaltecer a ciências humanas, as ciências sociais, mas no fundo na hora que vocês colocam isso no ar, vocês sabem que vão perder controle sobre isso e talvez isso aqui seja incorporado em uma outra narrativa dizendo assim "está vendo como a universidade é só local de balbúrdia?”. É muito sobre isso essa dissertação sobre como que se opera essa ressignificação e como que se opera essa perda do controle do conteúdo.
Juliana Mendes: Pensando nesse momento que você perde o controle das imagens, eu acho que isso tem muita conexão com o que é memória e eu queria pedir para você explicar memória e se ela é um ponto fixo, se ela é verdade, se ela é passada em si?
Gabriel Marinho: Embora surgiu um ponto muito trabalhado dentro de um espaço acadêmico historiográfico sempre tem umas diferençazinhas de conceituação, então talvez eu esteja um pouquinho mais alinhado com Jacques Le Goff, mas você encontrar outros autores que vão tipo dar um cream cheese a mais nessa ou naquela parte. Mas colocando da seguinte forma a memória é a forma como a nossa sociedade decide lembrar o passado e ela não tem nenhum compromisso exatamente com a verdade, embora ela tenha um laço com a verdade. Eles te dão um vento uma memória do nada, mas à medida que ela se torna um espaço de identidade além de ter mais compromisso com a narrativa do que propriamente com evento factual. Primeiro isso vem na ideia de que nós somos um povo, nós somos uma sociedade uma comunidade porque nós contamos as mesmas histórias. A gente se senta em volta da fogueira e a gente tem aquela figura do contador de história e ele vai contar como que nós chegamos nesse território, como começou essa comunidade e ele vai colocando a importância nesse ou naquele evento, nesse ou naquele fator. Isso cria um poder de aglutinação a gente sente uma identidade a partir dessa história. E isso é memória, a gente decide lembrar desse passado dessa forma, a gente fala muito sobre memória nacional, os nossos eventos marcadores vamos botar o dia que a esquadra de Cabral chegou na região de Porto Seguro, a proclamação da República, a morte de Tiradentes, são marcadores da nossa memória essa construção do que é o Brasil. Nós somos brasileiros porque nós contamos nossa história. Só que não tem como eu contar todas as histórias então à medida que eu conto uma história eu estou deixando de contar outra. Quando eu faço uma narrativa descrevendo que a história do Brasil ela praticamente começa com a esquadra de Cabral chegando aqui, não é que essa história esteja errada, mas eu imediatamente estou negando todo um contingente de nativos que já existiam aqui. Memórias sempre é uma escolha. Como ela está muito ligada a performance a gente hiperboliza algumas coisas para elas ficarem mais bonitas, "... de repente Dom Pedro I, quando ele proclamou a independência do Brasil, ele estava em cima de um cavalo maravilhoso e ele puxa uma espada e todos gritam independência ou morte".
Tarcísio Meira como Dom Pedro: Todos em forma. Sai. Canalhas, parasitas, cachorros. O que que aqueles imbecis estão pensando? Eles querem e terão a sua conta. Em forma. As cortes de Portugal querem nos escravizar, de hoje em diante as nossas relações estão cortadas. Eu nada mais quero do governo de Lisboa, nenhum laço nos une mais. Pelo meu sangue, pela minha honra e pelo meu Deus, juro promover a independência do Brasil. Independência ou morte. Independência ou morte. Independência ou morte. Independência ou morte.
Gabriel Marinho: Aquilo ali foi superclássico assim, a gente sempre usa em sala de aula a gente traz o quadro do Pedro Américo que tem ali a figura do Dom Pedro I no espaço de destaque triangular, tem aquelas figuras em volta, todos eles montados a cavalo já vestindo o uniforme de gala completamente limpo e a gente sabe hoje que a estrada de Santos quando era percorrida provavelmente com mulas e não com cavalos. Ninguém estava usando uniforme de gala naquele dia porque não fazia ocasião. Ai depois você descobre que aquele quadro de Pedro Américo foi feito 60 anos depois do evento, ele foi encomendado pelo filho dele. Acho que talvez o grande fato que a gente olha para aquela imagem quase que como uma fotografia. E aí quando a gente descobre que esse não foi exatamente o evento, a gente pensa nesse quadro como mentiroso, a gente vai de um extremo ao outro, não é exatamente uma mentira isso a gente sabe que o evento foi bem mais complexo do que isso, mas isso dá a ele uma carga performática, uma carga de narrativa que engaja as pessoas, as pessoas gostam disso. E a partir dessa ideia a gente vai construindo esse conceito de memória. Isso é diferente do conceito de história que tem a ver com método, tem a ver com o encontro de fonte.
Leyberson Pedrosa: Eu queria questionar a questão da responsabilidade das imagens de arquivo. Por mais que eu não tenha controle, você falou do podcast, a intenção ela continua, não? Ela tem um peso significativo, a intenção de se fazer um memorial no Chile para lembrar da ditadura com muita força e recurso e trazer essa bagagem contextualizada ela tem um significado, ela tem uma intenção, você pode recortar todos os fatos e inverter os números. Vou dar o exemplo agora na Covid, dizer que em vez de morrer tantas pessoas, sobreviveram outras. No final de contas as imagens de arquivo elas perdem responsabilidades porque na verdade o que se produziu pode ser aplicado a qualquer momento, em qualquer contexto?
Gabriel Marinho: Pensando na forma que você falou, sim. Eu acho que existem conteúdos que podem ser publicados independente do contexto. A imagem vai se ver isso. Você consegue pegar qualquer foto, qualquer áudio, qualquer imagem em movimento, torcer ela até ela ceder para a ideologia ou para o discurso que você quer. E tecnicamente isso é possível. A gente pode falar sobre uma responsabilidade ética sobre isso e existem duas linhas de pensamento a respeito. Tem um professor norte americano chamado Jay Leyda, ele já faleceu ele vai escrever talvez a primeira grande obra focada para cinema de arquivo, ele a chamava de cinema de compilação a gente ainda não usava o termo cinema de arquivo. E ele vai responsabilizar o realizar por descobrir a fonte original da obra, saiba dizer qual foi a intenção e o contexto inicial da produção, não que você não pudesse subverter o valor real da obra, mas que você tivesse priorizado a consciência da sua subversão. Sei que isso aqui era uma obra nazista e agora todo mundo começou a mandar uma obra antinazista, mas ai eu vou pegar também um professor da Universidade de São Paulo que também já está aposentado Jean-Claude Bernardet ele vai colocar o artigo do início dos anos 90 sobre uma desresponsabilização, ele fala que a imagem ela saltando de contexto em contexto e cada um deles vai perdendo o significado que quando ela chega em você é quase impossível você rastrear esse significado original e que na verdade a leitura que você faz é mais uma leitura de composição, dois homens estão em uma praia e eles estão falando com a população e esses dois homens a depender do contexto podendo ser; dois homens pobres. A depender do contexto você pode colocar ali; são duas pessoas do sexo masculino. O que vai determinar qual que é o valor da imagem e um valor de composição muito mais do que o valor de contexto original da obra. De certa forma ele desresponsabiliza você de fazer essa busca e fala que a sua responsabilidade está mais em cima da obra que você está produzindo agora, do que que essa imagem serviu. O Leyda está escrevendo isso quando ele fala da importância de você saber o contexto original no momento que você não tinha ainda um excesso de conteúdo audiovisuais na potência que a gente vai ter nos anos 90, em todos eles em película, a gente não tinha nada em digital. Era fácil, fácil assim; era razoável você conseguir rastrear quais foram as duas, três únicas vezes que aquela imagem foi usada, você fez uma cópia dessa imagem e ela foi usada para algum outro filme. Quando Bernardet vai falar sobre isso a gente já está falando de uma imagem que pode ter sido usada 900 vezes e muitas vezes o contexto que ela ficou mais famosa nem foi o contexto original. As vezes essa imagem surgiu de como um filme familiar e depois ela vai ser usada como um filme de grande circulação e é nesse filme de grande circulação que ela tem a sua maior expressão. Qual que é o contexto original, esse com maior expressão ou o outro? Eu Gabriel, pessoalmente acho que estou um pouco mais alinhado com o Bernardet hoje, eu acho que é quase impossível você rastrear na totalidade o contexto original da obra e eu desloco minha responsabilidade muito mais para a narrativa que estou realizando nesse momento. Dói um pouco saber que eventualmente algumas das imagens que eu vou realizar podem ser usadas contra mim em um tribunal futuro, mas eu acho que faz parte de você se colocar nesse tipo de cinema, que é um cinema polissêmico.
Juliana Mendes: A gente está falando da intencionalidade do realizador e aí tem também a questão do que não é intencional, que tem o Marc Ferro e ele vai falar das verdades latentes do filme do que está ali e não está necessariamente proposital, mas que nos permite entender uma determinada época talvez uma determinada questão.
Gabriel Marinho: O Marc Ferró, ele talvez foi o primeiro… sempre tem o problema de falar que foi o primeiro a fazer alguma coisa que vai ter um espírito de porco que vai descobrir alguém que veio antes, mas ele tem uma fama de ter sido talvez o primeiro historiador de lastro a investir pesquisa e estudo usando o cinema como objeto e ai vem a ideia que você vai conseguir descobrir a partir da análise do filme a contra-análise do filme tem um trecho que é uma espécie de lenda urbana, não sei se é verdade que o Marc Ferró teria visto algum dos cinejornais brasileiros na época do golpe militar e ele estava discutindo os eventos, uma coisa que é tipicamente análise do Marc Ferró ele fala assim " ah, essa performance sobre democracia que é feita aqui no congresso brasileiro é uma performance ela tem muito a ver com uma mise en scène ali, mise en scène tecnicamente seria a sua performance em frente a uma câmera ou em frente a qualquer evento em que você está sendo objeto de olhar, meu olhar ele está direcionado para aquilo que foge da mise en scène. Por exemplo perceber que nesse congresso que está se discutindo se o Jango vai cair ou não, não há nenhuma mulher ou pessoa negra no congresso. Então esse é o típico olhar do Ferró, aquele o olhar que vai tentar procurar aquilo que escapa a mise en scène, que escapa ao que desejava o realizador da obra. Eu acho muito legal, só que eu acho que ele também tem suas questões porque ele também não faz investimento em fazer uma leitura de linguagem da obra. O que não significa que o Marc Ferró não tenha o seu papel incrível, acho que ele abre muitas portas, mas ele invés tentar entender aquilo que escapou do realizador. O que o Bernardet talvez vai chamar de ruídos quando ele vai fazer análise de algumas obras audiovisuais e que a gente acaba fazendo essa migração de imagens, pega imagens de diferentes contextos e vai colocando em uma time line nova para montar uma nova narrativa, ele sempre fala que tem alguma coisa ali que era bom que não tivesse. Vou dar um exemplo, que foi feito pelos meus estudantes inclusive: o primeiro campeonato brasileiro de 1971 e você quer pegar uma imagem do Mineirão, foi um campeonato que foi vencido pelo Atlético Mineiro. E você não tem nenhuma imagem do Mineirão, nada, ou melhor você tem uma imagem do Mineirão, mas não de 1971, que foi o ano que eles venceram o campeonato. Mas assim, cara, eu quero dizer que essa passagem vai acontecer dentro desse estádio e eu vou pegar qualquer imagem dos anos 70, um plano geral do estádio e colocar aqui. Tipo eu estou começando o filme, esse jogo acontece no Mineirão, aí eu pego uma imagem de 1974 e coloco aqui para indicar onde que é o local. Eu abro mão de uma aderência muito grande ao evento, ao tempo, beleza. Só que dentro dessa imagem que você escolheu tem um carro pequenininho ali no estacionamento, ali bem mindinho e esse carro só foi lançado em 1973, ele indica que aquela foto está descontextualizada e o Bernadet vai chamar isso de ruído. Se você for muito atento ele vai quebrar a sua continuidade temporal, mas eu deduzo assim: o carro é um ruído que quem vai perceber isso é 0,2% dos meus espectadores eu estou de boa como lidar com esse ruído. Filmes de imagens arquivos estão cheias de ruído, esses marcadores que vão indicando para você, esse cara recontextualizou essa imagem, o negócio não tem nada a ver e está aqui. Você vai lidando como realizador, tipo, isso aqui passa ou não passa? Qual que é o ponto que eu perco a pessoa que está lendo meu filme, assim: cara, isso aqui não tem nada a ver ou ele nem percebeu isso.
Leyberson Pedrosa: Você falou da questão dos ruídos eu lembrei de um que me chamou a atenção que foi um trabalho que você participou que foi do Faroeste Caboclo e que tem ali um momento onde tem um jornal que é mostrado o Santo Cristo, só que esse jornal ele tem um trabalho de arquivo muito bom, só que me chamou a atenção foi a gramatura o tipo de material do trabalho, que talvez a maioria das pessoas não tenha percebido, " ah como é Brasília como eu nasci aqui, como eu quero o perfeito", mas espera aí, mas era assim o jornal? E como eu sou jornalista então assim, se eu posso citar isso, se você poderia citar também a própria experiência prática de ruído.
Gabriel Marinho: Talvez o René Sampaio fique chateado com você, ai está supertranquilo. Nesse caso acho que ele até foge de um ruído em imagens de arquivo, mas acho que a gente pode pensar em um ruído em um espaço de ficção além que se preocupou muito em ter um jornal de época com a fotografia que saiu, com a manchete e com a data, só que a gramatura do jornal não era possível. Eles não iriam conseguir usar o papel jornal de época dos anos 80, existiam papel jornal, mas papel jornal dos anos 80 ele é diferente do papel do jornal que é usado já nos anos 2000. Não tinha como recuperar aquele papel jornal. Então foi uma liberdade que a gente usou, pode até usar o mesmo termo ruído para esse caso e é isso você faz parte dos 0,2% daquela população que, "que porra é essa, não era esse papel que estava sendo usando" e ah, entendeu, beleza. A gente perdeu o Leyberson, mas seguiu com os outros.
Leyberson Pedrosa: Mas em tempos René Sampaio que está nos ouvindo aí, em tempos de easter eggs assim, é até interessante que as pessoas vão voltar assistir e ainda vão poder dar um zoom sobre aquilo. E ai eu queria emendar com minha pergunta de fato se não está mais complexo trabalhar com imagens de arquivo nesse momento, porque é isso assim, trabalhando desde questão tecnológica de alta resolução, você não pode vacilar ali no título, na data, você está trabalhando com imagens cada vez mais atuais com muito mais fontes, com muito mais olhares, ângulos e também que tem muito mais material que tenta desorientar de propósito e você como imagem de arquivo ali você tem que, " tá isso aqui entra, vou ressignificar"?
Gabriel Marinho: Eu concordo com você querendo que muito mais olhares, vigiadores, aquele olhar que vai exigir de você um preciosismo histórico muito maior sobre a obra, e a gente tem que assumir essa responsabilidade. A gente está em um período que a gente consome obras exigindo cada vez mais esse tipo de pressão.
Carol Costa: Elvis é uma das figuras mais memoráveis da cultura pop do século XX e quase 50 anos depois da morte do artista ele continua despertando o fascínio dos fãs de música. O novo filme de Baz Luhrmann, Elvis. Narra a história do rei do rock desde sua infância simples até sua polêmica morte. Mas como o longa usa de bastante licença poética para criar um grande espetáculo, a gente resolveu te contar a verdade por trás da vida do artista, incluindo as polêmicas que o filme amenizou. Será que ele realmente merecia o título de rei do rock? A igreja católica chegou a publicar um artigo intitulado cuidado com Elvis Presley por julgar que seus movimentos eram vulgares. Elvis até foi ameaçado de prisão por conta do seu requebrado quando um juiz da Flórida ordenou que o cantor fizesse um show com menos dança e preparou mandados de prisão prometendo ao menor sinal de rebolado mandaria o artista para cadeia. Diferente do que aparece no filme de Baz Luhrmann a promessa acabou sendo só um blefe e Elvis nunca chegou a ser detido.
Gabriel Marinho: Isso é meio cíclico, tem uns momentos que a gente é super de boa, acho que é nos 50, anos 40, a gente tinha uma liberdade maior para lidar com isso, depois a gente vai e volta, não há uma linha contínua você vai cada vez exigir mais, mas ai a gente vai passando por isso e acho que é uma exigência do nosso tempo, "não era essa roupa que era usada naquele momento, não era isso" e vamos assumir esse desafio cada vez mais, você está investindo mais em consultoria histórica, em uma equipe de pesquisadores, as vezes nem tinha pesquisadores depois começou a ter pesquisador, agora tem uma equipe de pesquisadores para ter que lidar com tudo isso. E eu acho super bacana só que eu acho que tem casos e casos por exemplo: neste caso que eu tinha citado anteriormente sobre o estádio do Mineirão, quando um espectador percebe que aquela foto, que aquela imagem não corresponde ao Mineirão em 1971, eu não percebo que a gente perde o valor de verdade, que a gente vai ganhar uma pessoa que vai botar o comentário para a gente assim: ei, essa foto não é. E beleza eu acho que inclusive tem um valor bacana o quanto que esse cara estava prestando atenção no filme para ir atrás disso sabe, é o tipo de interação também. Só que tem algumas obras que elas se colocam em um espaço público mais próximas de uma factualidade, embora eu ache que nenhuma vai conseguir chegar a sua factualidade, uma obra audiovisual não é história ela é memória ela está muito mais preocupada com a performance do que com a factualidade, mas tem algumas obras que elas se colocam mais próximas desse valor que a gente chama de estatuto da verdade. Se você está trabalhando sei lá para um canal como era o caso de quando eu trabalhava na TV Escola em canais que tenham esse lastro acadêmico esse lastro educativo, eu acho que esse nível de preciosismo é uma exigência muito importante que deve ser seguido. Você errar sei lá a vestimenta de um soldado grego em determinado filme, é ok vai virar objeto de graça. Mas em alguns locais isso pode ser muito sério. É assim que uma leitura sobre qual que é o espaço inicial que esse objeto vai circular. O filme de arquivo ele pode ser muito bom, o mesmo filme pode ser muito preciosista e pouco preciosista a depender de onde que ele se pretende circular.
Juliana Mendes: Na nossa época tem uma tecnologia digital que torna mais fácil tanto produzir como distribuir imagens, você tem inúmeras aí e aí eu fico pensando se isso torna mais fácil o filme de arquivo que você tem muito mais material para pesquisar, se torna mais difícil por que você tem que correr atrás de direitos autorais que você não sabe de quem que é ou se simplesmente é só algo diferente?
Gabriel Marinho: Talvez a melhor resposta é algo diferente, as regras e os desafios vão ser diferentes. Você acertou em cheio que a gente sai de um regime pouco volume de disponibilidade de material, eu as vezes pesquisava meses para conseguir encontrar uma foto ou um filme e normalmente agora eu encontro ele com uma pesquisa rápida, no youtube ou no google, e o meu desafio passa a ser outro, encontrar a quem detém o direito disso. E isso é uma questão porque existe uma percepção dentro do espaço de hiper compartilhamento da internet em que esses objetos não detêm autorialidade, e isso era uma super questão quando a gente fala de imagem de arquivo, um filme de imagem e arquivo as vezes a gente está falando de um terço ou a metade do orçamento gasto com direito autoral. E é curioso que todo mundo quando vem fazer orçamento com a gente assim, acha que é um filme barato e aí quando eu coloco assim a parte dos direitos que as vezes são arquivos da Globo, arquivo de tal local, isso é uma parte cara. Só que agora como muito desses arquivos caíram na internet, no Youtube e é relativamente fácil você baixar se você não tiver nenhum preciosismo com a qualidade da imagem, você consegue montar seu filme com ele? Deve dar aquela tentaçãozinha, cara, é só usar é só montar aqui. Só que se você tem alguma pretensão comercial maior com o filme, muito provavelmente vai ser alvo de alguns tipos de processos de autorialidade. O desafio passa a ser outro, passa a ser esse de... tá eu encontrei essa foto fácil, encontrei essa imagem fácil agora tenho que conseguir rastrear essa autorialidade. Volta um pouco uma pergunta que vocês fizeram algum tempo atrás, essa aí de ter que rastrear ou não contexto original de obra. A gente rastreia muito mais hoje em dia para conseguir pagar a pessoa do que propriamente reencontrar o contexto de intencionalidade. Tem uma hora que essa informação se perde por exemplo: é a partir dos anos 80 a gente tem um registro muito bom de quem realizou essa foto, veio de qual jornal, quem realizou esse filme, veio de qual produtora, mas antes dos anos 80 aqui no Brasil isso é muito terra de ninguém, assim é difícil mesmo assim. Você vai chegar em um arquivo do Jornal do Brasil, o próprio Correio Braziliense eles detêm a foto e não sabem quem tirou, quem foi o fotógrafo que tirou ou muitas vezes eles têm uma foto que a gente sabe que saiu em vários jornais, mas se você for nos jornais nem eles mesmos sabem, eles têm essa memória de como essa foto chegou até lá. A partir dos anos 80 isso é muito bem registrado, se quiser uma foto de 1988 você sabe dizer se ela circulou e quem fez, uma foto de 1971, não. Quando você produzir uma larga quantidade de material em 35 x 16 mm que eram as bitolas quando a gente registrava audiovisual antes do digital que ficava em filme fotográfico, por mais que fosse muito mais caro comprar o filme, revelar o filme ele tem uma sobrevida muito grande se ele for bem cuidado. Tem filmes que estão durando 100 anos nos arquivos se eles forem bem aclimatizados. Então não é um conteúdo que se perde é muito diferente do digital. O digital uma vez produzido ele se não tiver um esforço de constantemente passar ele para um outro HD, para um outro formato ele é um material que se perde. Você vê um DVD em cinco anos, menos do que isso as vezes você já não consegue acessar ele. Se você tinha alguma imagem que estava em um CD ninguém nunca pensou em passar ele para um HD e depois passar ele para outro formato, ela se perde mesmo. Então, além de ter um outro grande desafio hoje que ainda a gente não sabe como resolver que é o arquivo digital. A gente tem um acesso muito fácil a aquilo que foi produzido ontem, ontem em um termo metafórico assim recentemente e aquilo que por ser muito popular é objeto de cópias, você copia para outro formato, copia para um outro, mas um material que foi produzido digitalmente em 2001, mas que teve pouca circulação, ele provavelmente se perdeu.
Leyberson Pedrosa: Eu tenho uma última pergunta Gabriel, me veio aqui seu primeiro trabalho pós conclusão de curso do Memórias Finais da República de Fardas, as palavras que vieram é memória viva, porque você trabalha com imagens de arquivo fazendo ali a sua migração e ressignificação e também trabalha com memória da pessoa que vivenciou aquele período, conversando diante das imagens de arquivo e isso para mim é um dos pontos mais interessantes, como uma imagem de arquivo ela traz elementos da memória de uma pessoa entrevistada que ela mesma não teria se não tivesse esse recorte esse movimento, e vou usar as palavras que você usou ali da questão da migração mesmo e antes mesmo de ir para o documentário há um momento anterior que para ele é uma nova ressignificação.
Gabriel Marinho: Isso é um campo da história que a gente chama de história oral que é a maneira com que comunidades preservam a sua história e vão construindo a sua memória a partir práticas orais contando de uma pessoa para outra, sobretudo em locais em que… não é o estatuto da escrita em que a escrita não é o espaço preponderante daquela memória. Você vai pegar uma história clandestina do comunismo brasileiro contada de forma oral que não era nos livros, não era nos espaços de institucionalização que ela poderia se propagar, então ela vai se propagando de forma oral. E aí essas imagens de arquivo a gente usa como um gatilho, as pessoas as vezes tem uma dificuldade de fazer algumas conexões as vezes a foto daquele local e tudo dispara uma memória daquele espaço. Mas pode ser uma memória inventada também, não tem muito sobre isso. Tem uma história que eu acho incrível nesse primeiro documentário sobre o Memórias Finais da República de Fardas, um documentário sobre a campanha das Diretas Já em Brasília em 1984. E aí um dos eventos que eu acho que fala muito sobre o que é memória, o que é história e como que a imagem de arquivo ela pode servir como um gatilho. Na noite do dia 24 de abril na véspera da votação da emenda Dante de Oliveira a população de Brasília do plano piloto especificamente resolveu fazer um buzinaço contra a ditadura militar mais especificamente contra as medidas de emergência. Brasília estava cerceada por todos os lados, ninguém entrava e ninguém saía, tinha eventos que lembravam quase um toque de recolher na cidade e justamente para tentar desanuviar uma tensão política que acompanhava a votação. Sem poder realmente fazer durante as manifestações a população começou a passar na frente do congresso nacional e começou a buzinar, buzinar, buzinar e aí o General Newton Cruz resolveu então pegar alguns ônibus e bloquear, ele começou a colocar de forma transversal no Eixo Monumental. Para quem não é de Brasília o Eixo Monumental é uma pista muito larga tem seis pistas e ele colocou dois ônibus de forma que ele não deixou os carros avançarem, todo mundo estava buzinando. Ali era em frente ao Ministério do Exército, na Esplanada dos Ministérios. Então ele desce e faz uma coisa completamente perigosa até para ele, porque ele desceu sem nenhum segurança, completamente quebrou um protocolo de segurança. Ele pega um bastão de comando, daquele que é usado quando você está em cavalaria e ele começa a bater nos capôs dos carros, "desliga essa buzina, para com isso" na descrição dele as pessoas viram lá o General com a sua autoridade e pararam de buzinar, mas ficaram completamente assustados com aquilo e tinha alguns fotógrafos tirando fotos desse evento e ele viu aquilo e mandou prender os fotógrafos. Naquela época segundo o Estado de emergência, os meios de comunicação de rádio difusão estava censurados, mas os inscritos não. Então ele não poderia manter aqueles fotógrafos presos, eram fotógrafos de veículos impressos. O que eu consegui falar com um dos fotógrafos é que mais ou menos umas cinco horas da manhã ele chegou lá na prisão, foram presos dez da noite ficaram até umas cinco horas, ele chegou lá pagou um sermão como se fosse um grande pai, mas soltou eles porque ele não poderia manter eles ali presos. Só que ele apreendeu os filmes. Eu fico imaginando que alguém volte para o Correio Braziliense, aí é a parte da minha memória, eu criando essa hipótese, alguém volta para o Correio Braziliense conta aquela história incrível de um General que reagiu àquela manifestação daquela forma e alguém viu assim: Tá bom, que ótimo tudo, cadê a foto? E não tem foto, não tem foto nenhuma desse evento e aí na ausência de foto o que que a redação do jornal faz? Ela recorre ao arquivo, ela recolhe as fotos que já foram tiradas para minimamente ilustrar e aí alguém pegou uma foto do General Newton Cruz em cima de um cavalo durante o desfile militar que aconteceu no sete de setembro se não me engano e colocou no texto, se você olhar para as primeiras matérias que tem sobre o buzinaço em Brasília, nenhuma fala do Newton Cruz em cima do cavalo, mas tem a foto dele em cima do cavalo e tem a descrição do evento e as pessoas passam a associar a foto com o evento e pensa: esse cara estava em cima do cavalo. Tanto é que o evento ele é noturno e a foto é diurna e aí um ruído, tipo, a gente estava falando de ruídos, isso é um ruído de escolha de arquivo. Só que isso começa a criar uma memória tão grande que praticamente todo mundo que eu entrevistei para esse filme falou: "eu vi o General Newton Cruz em cima do cavalo batendo em cima dos capôs" e é curioso nesse caso como o ato dele ter censurado essas imagens, da circulação dessas imagens acabou criando uma memória que ele detesta porque ele falou assim " eu não estava em cima do cavalo" mas quem que criou esse General em cima do cavalo foi ele ao não deixar a imagem real do evento circular.
General Newton Cruz: Quando eu olho na janela do meu gabinete na frente do meu gabinete, os automóveis estavam ali, todos de faróis acesos em linha, pegando desde meu quartel general até o congresso, todos de faróis aceso, buzinando, buzinando. Muito bem, isto o que que é? Isto é um ato que estava proibido pelo… mim. Constitucionalmente proibido dentro das atribuições que eu tinha. Quando eu vi aquilo eu falei "essa passeata não pode sair, não pode sair porque se sair eu estou desmoralizado, eu proibi. Vai saí na porta do meu quartel general e eu só usei na medida de emergência, tropas da polícia militar, eu não usei um soldado do exército. Desafio a quem tenha visto um soldado do exército na rua, desafio. Eu estava usando a polícia militar e eu tinha um pelotão da polícia militar a minha disposição que eu já tinha mandado embora. Eu estava praticamente só, falei "não pode sair" aí o que que eu fiz, ao que que eu fiz: eu desci. Tinha uns dois ou três oficiais comigo, eu desci e falei: E agora o que que eu vou fazer meu Deus, essa passeata não pode saí. Eu não tenho nem tropa aqui. Eu desarmado, uniforme de passeio, não estava nada de culote, nada de uniforme, passeio com um bastão de comando. Aí eu tive ideia eu vi o sargento comando da guarda " olha aqui, pega o ônibus e põe na frente dessa passeata" tinha um ônibus ali e ele pegou e pegaram o ônibus e puseram então os carros não podiam passar porque tinha um ônibus na frente aí o que que eu fiz, eu sozinho, sozinho parei na frente dos carros, quando eu parei, não sei por que eles apagaram os faróis, eles me viram e apagaram os faróis. É verdade que eu estava com bastão de comando e eu ia andando e realmente eu estou… batia no capô e recriminava o que eles estavam fazendo, batia para chamar atenção. Ninguém contestou o que aconteceu. Eu fui do princípio até o fim. Apagou tudo, ficou tudo em silêncio eu voltei e eu não sabia o que eu ia fazer. Falei: agora meu Deus o que eu vou fazer? Aí eu falei o seguinte, faz o seguinte deixa… abre aí e… comandante da guarda, a guarda do quartel e deixa passar carro a carro e toma nota. Então passa, passa e saiu todos os carros, acabou a fila eu mandei rasgar.
Juliana Mendes: A gente vai encaminhando para o encerramento do programa e vou deixar o microfone aberto para o que você queira acrescentar e queria também pedir para você falar sobre do seu horizonte então projetos futuros tanto de realização quanto acadêmicos.
Gabriel Marinho: Eu queria primeiramente agradecer a oportunidade incrível aqui de estar com vocês dois nesse projeto que eu acho superimportante e que precisa ser visto a gente precisa olhar para ciência sem jaleco, aquela ciência feita de várias formas que não envolve exatamente números, mas envolve um saber acumulado em bibliotecas e livros e experiências em trocas. Ciências humanas que nos encanta isso é ciência também, tem um método, tem uma expertise, tem uma rigidez acadêmica também. Uma das coisas que me encanta nesse projeto é isso as vezes ciência humana não é opinião é uma construção de conhecimento real ter essa oportunidade de falar sobre isso que é muito bom. Eu acho que é sigo com a pretensão de continuar trabalhando com documentários de arquivos que é uma paixão mesmo sabe, falar sobre o passado e como que a gente constrói esse passado de forma compactuada e consensual, muito mais do que factual, mas revelar isso, isso acaba sendo uma das minhas premissas ao fazer filmes tanto de memórias quanto prólogo. Eu sei que não vai ser possível para mim como não vai ser possível para ninguém chegar na história factual. Essa história efetivamente aconteceu, mas revelar para o expectador quais são os processos de criação dessa história. Porque eu acho que eu consigo devolver para o meu expectador uma responsabilidade de leitura que ele precisa ler um documentário histórico, não de forma crítica não de forma assim " ah, então foi isso que aconteceu", mas ele perceber assim, aqui tem eventos reais, mas também tem eventos ficcionais e cabe a mim no meu bom senso, no meu processo de leitura crítica eu conseguir entender. É algo que eu tento deixar muito marcado nos filmes, existe um passado e esse passado em alguma medida é inalcançável, no sentido material ou palpável para chegar até a gente ali, precisou passar por várias reinvenções, mas eu vou deixar bem explícito isso para você, para que você consiga criar o seu caminho para poder olhar para ele. Seguimos com outros filmes e outros projetos mais recentemente envolvendo a população preta que eu acho que nos primeiros projetos eu estava muito falando sobre uma política institucional brasileira do regime militar e eu acho que a população preta ela ocupou um espaço de micro-história dentro da narrativa do passado do Brasil, eu queria contribuir para que ela saísse dessa categoria de micro-história, tem o próprio projeto do podcast sobre filmes e séries históricas. E eu continuo estudando sobre isso, esse processo de olhar sobre o passado, sobre os arquivos, sobre a ausência agora mais recentemente de corpos pretos nos arquivos tanto no Brasil quanto no mundo, como é difícil contar uma história preta quando você não tem esse volume de material quando a gente está falando sobre outros personagens que são marcadores de uma memória nacional.
Leyberson Pedrosa: Bom, a gente agradece muito o Gabriel do presente por essa participação e ao Gabriel do futuro a gente fica na expectativa aí dos documentários e a gente encerra hoje curiosamente no dia 15 de novembro dia da proclamação da república, o Dazumana especial novas mídias e a gente convida todo mundo para maratonar os antigos episódios, as temporadas anteriores, as revisões de literatura e lembramos que o Dazumana está no youtube e em várias plataformas de podcast: spotify, google podcast e itunes.
Juliana Mendes: Este projeto é realizado com recurso do Fundo de Apoio à Cultura do DF. É isso até a próxima. Dazumana a ciência sem jaleco.
00:00 - BLOCO 1: SITUANDO O CINEMA DE ARQUIVO
Interesse por documentário no Ensino Médio
Série "O Século do Povo" Cinema de Arquivo
Diálogo ficção e documental
Filme "Band of brothers"Filme "O mais longo dos dias
"Filme "A tênue linha da morte"
Série "Years and Years"
10:50 - BLOCO 2: QUESTIONANDO O ARQUIVO
A democracia Filme "Jango"
Cinejornais do IPES
Importância de acervo
Não somos donos da própria obra
Jacques Le Goff
Memória
Ética da produção
Jay Leyda Jean-Claude Bernardet
Marc FerróRuídos
27:50 - BLOCO 3: PRESENTE DA PESQUISA DE IMAGENS
Olhares vigiadores
Preciosismo
Lugar de distribuição
Pesquisa de imagem no mundo digital
Conservação
História oral
General Newton Cruz
Horizonte de pesquisa e produção
"A Migração das Imagens: O uso de imagens de arquivo no cinema documentário brasileiro (1961-1984)"Dissertação de Gabriel Marinho.
O PrólogoDocumentário de Gabriel Marinho.
Entrevistado: Gabriel Marinho
Pesquisa e locução: Leyberson Pedrosa e Juliana Mendes
Gestão e Produção executiva: Carolina Villalobos
Redes sociais: Gabriella da Costa
Montagem: Juliana Mendes
Edição: Thais Rodrigues
Site: Vinicius Cortez
Design gráfico: Diana Salu
Transcrição: Audiotext
CRÉDITOS:
Trilha sonora em CC - Little hymn de Stefan Kartenberg (http://ccmixter.org/files/JeffSpeed68/61297)
Efeitos sonoros - Audio Library do YouTube (https://www.youtube.com/audiolibrary)
Efeitos sonoros - Pixabay (https://pixabay.com/sound-effects)
Vídeo 1 (comentário): francisco grave - O SÉCULO DO POVO EP 5 - 1924 - A LINHA DE MONTAGEM (https://youtu.be/rpj1puOB_Rs)
Vídeo 2 (comentário): Canal Curta - O Prólogo (Promo) (https://youtu.be/742KvWOocq8)
Video 3 (comentário): Dom Master - Filme Independência ou Morte 1972 HD 720p (https://youtu.be/sGr6lhUizjc)
Video 4 (comentário): omeleteve - ELVIS PRESLEY ERA O VERDADEIRO REI DO ROCK? (https://youtu.be/wXX2Y-_akQc)
Vídeo 5 (comentário): Roda Viva - Roda Viva Retrô | Newton Cruz | 2001 (https://youtu.be/8gJXhjU_SgM)